A esquerda morreu (?) e querem que você acredite nisso.

 
Como pergunta inicial, deveríamos nos questionar: por que tanta gente se dispõe a discutir sobre os rumos da esquerda? É uma questão de tradição crítica? É por conta da hegemonia da esquerda? É, porque as pessoas se importam com o projeto político popular? Talvez por simplesmente se identificar com um projeto popular, mas não gostar da trajetória atual? Enfim.

O motivo subjetivo de cada um não importa tanto para o que proponho nesse texto. A grande questão sobre esses debates políticos é que eles são feitos de forma muito abstrata, sem dados reais, sem uma discussão política objetiva. Esse subjetivismo, de opiniões aqui e ali sobre uma liderança abstrata cuja a origem é desconhecida, debates rasos sobre comunicação social, discursos performativos sobre economia e um apelo moralista, apocalíptico ao pânico moral, não levam a gente atuar, muito pelo contrário, são uma excelente desculpa para não se fazer nada.

Nós precisamos ser bem maquiavélicos, no sentido de compreender, que no fim, quando se trata de política, o próprio debate público também é um campo de batalha e portanto, faz sentido defender os próprios interesses. Se fulano ou ciclano têm um projeto de poder, isso é legítimo e esperado.

Inclusive é dessa simples conclusão que se pode explicar o subjetivismo generalizado no debate público.

Quando se fala de algo comum, no máximo temos explicações baseadas em moralismo, senso comum, etc. Exatamente porque são nessas esferas morais que o subjetivo reina.

Numa comparação bem por cima, quando um bolshevik entrava no partido, quando uma pessoa entrava no movimento negro unificado, ou quando se organizava em um movimento abolicionista, o que a gente precisa entender é que essas pessoas do passado, não tinham essa mesma noção exagerada do “Eu”.

Durante a escravidão no Brasil, ocorriam casos de exceção de abolições dentro do sistema escravista. O que marca o fim da escravidão nunca foram esses casos isolados, mas justamente o movimento abolicionista organizado para tornar a liberdade possível.

A modernidade é marcada pelo individualismo, é a época do nascimento da psicologia, do super–heroi solitário, das histórias de superação e da auto-ajuda. Com qual discurso a extrema-direita conquistou tanto espaço ? Liberdade individual irrestrita !!

Logo, se na política é verdade que as pessoas buscam seus interesses, isso vai se expressar de forma diferente em sociedades diferentes.

Se uma determinada sociedade tem uma cultura de cooperação, essa sociedade vai se organizar em grupos sociais e esses interesses, as articulações da política, as ideias, a forma de produzir ciência, vão ser coletivas.

Seguindo essa lógica, faz sentido que numa sociedade individualista se expresse, por exemplo, uma disputa entre egos, entre valores morais inatos e conhecimentos herméticos, que as articulações sejam muito mais baseadas em interesses pessoais.

Em inglês existe um termo “dog-eat-dog world” (cão come cão) que expressa justamente essa sociedade de todos contra todos que a gente vive. O grande mistério aqui, é como ainda assim, numa sociedade com esses valores individualistas ainda se formam grupos organizados na sociedade civil.

Essa explicação nos serve de base para tentar entender essa pandemia de análises sobre “o rumo da esquerda” que se espalhou no debate público brasileiro.


1- A tese do aceleracionismo-vazio

Se a gente fosse de fato tratar do aceleracionismo de forma séria, a gente estaria discutindo as teorias da história em Hegel, Marx, Deleuze e Guattari, Fisher e Nick Land, etc. O ponto central entre todas essas teorias é que a história se desenvolve de determinada forma a superar qualitativamente e quantitativamente determinado valor considerado como parâmetro de desenvolvimento. Em Hegel, estaríamos falando da liberdade, em Marx um desenvolvimento das forças produtivas, etc, etc.

Digo que existe uma tese aceleracionista-vazia, porque nela não existe essa concepção de história, não se tem parâmetro para dizer que mudou algo. É um tipo de nihilismo além do nihilismo, os anarco-nihilistas pelo menos tem lá seus parâmetros de destruição e caos, já os vazios (como vou chamar essa ideia daqui para frente), nem isso possuem.

A ideia é muito bem resumida pela postura de Bolsonaro : “contra tudo o que está aí”. A pergunta que fica é : “o que está por aí ?” Existe um critério ? É muito isso que eu quero destacar, não se trata de uma proposta de destruição completa, existe uma seleção, senão veríamos atacando mesmo valores que eles defendem. No caso do Bolsonaro, não haveria uma censura em relação a destruir o cristianismo, a família, a propriedade privada, etc.

Se quer destruir tudo que lhe interessa destruir. É uma espécie de explosão controlada, direcionada. Mas sem nenhuma proposta do que fazer depois do estrago, não que as estruturas sejam sagradas e devam ser mantidas eternamente, mas que é necessário entender o papel delas na sociedade, para saber exatamente o que se fazer com elas.

Pode ser que se reforme o sistema educacional, mas que se abolissem a polícia militar. A questão é que os vazios isso nem é uma questão, é uma destruição pela destruição, com objetivo baseado inteiramente num projeto de “se todo mundo morrer, eu viro rei”.

Toda crítica hoje se passa por um “tá tudo uma merda, ninguém presta” e claro “eu vou resolver”. Isso vai do PCBR, passando pelo falecido PDT (e do trabalhismo em geral), alguns grupos trotskistas, pelo PCB-CC, por algumas organizações maoistas e anarquistas. E veja, fora do que a gente chama de esquerda, esse mesmo tipo de crítica também existe, mas ela toma uma forma conspiratória : é a cultura woke por todo lado, é o kit gay, o judeu internacional, CEOs comunistas obscuros, etc.

E fica aí a pergunta : quem tem mais espaço? A direita ou a esquerda ? Note que o reformismo liberal muitas vezes faz eco com o conservadorismo, isso é verdade. Mas a gente realmente precisa que dentro das nossas organizações populares reproduzir teses, discursos, mesmo práticas, que são conservadoras com intuito de “ganhar adesão”.

No final das contas, o que você acha que acontece ? Nós começamos a ver discursos de “E O PT???”, “o identitarismo destruiu a esquerda”, “agenda woke tá em tudo”, etc, dentro mesmo da esquerda. É complicado, para dizer no mínimo, você ver organizações de esquerda soltando esse tipo de discurso conservador como uma pessoa de minoria. Se o lugar de fala é relevante, eu como uma pessoa trans não me sentiria nenhum pouco segura com um grupo social que diz que me defende no sigilo e lá na rua continua reproduzindo preconceitos do status quo “para ganhar adesão”.

É da mesma maneira que a gente sabe que político da direita finge que gosta de pobre em dia de eleição.

Não adianta a esquerda achar que reproduzindo o discurso da direita de forma socialmente aceita (em forma de “crítica”), ela vai ter o mesmo nível de adesão que os políticos conservadores quando fazem a mesma coisa.

É engraçado que se pode criticar quando a esquerda liberal vem com discurso de populismo penal para ganhar voto, quando a esquerda radical, vem com esse mesmo tipo de lógica de discurso conservador para ganhar voto (ou membros), aí pode. Aí não é errado, não tem nada demais, é isso mesmo ?

Ainda que isso dê certo, você acaba por criar uma adesão a você por causa da sua postura conservadora, isto é, você junta cada vez mais do seu lado, gente conservadora que vai te cobrar para que você de fato seja o que fala ser. Quando você for por um secretário de educação, por exemplo, não adianta querer “esquerdar” do nada, porque os seus eleitores já vão estar esperando que você seja um reacionário - você vai acabar saindo como traidor ainda por cima. Por exemplo, não é a toa que a organização neonazi como a Nova resistência tenha juntado ao PDT, a cada 5 segundos o Ciro solta um “E o PT ????”, “e o identitarismo ??” e espera que os nazistas não gostem desse discurso ?

Em política não se faz xadrez 500d, deixe isso para os espiões.


2- Autodestruição ou autocrítica ?

Autocrítica serve em uma definição bem simples para melhorar nossa prática. É uma crítica com propósito de aproveitar o que funciona e aprimorar nossa prática. Ou seja, por mais crítico que sejamos, algum elemento do velho continua existindo. Não se joga água fora com o bebê e a bacia.

Como o que reina são projetos individualistas, ou no máximo projetos de seita evangélica suicida, não existe uma noção de que outras pessoas defendem teses, pautas, militam por causas parecidas, são aliados possamos constituir trabalho em conjunto : se trata de uma lógica de competição.

Então a crítica nesse caso, não tem nenhuma intenção de melhorar ou de aprimorar a prática, a lógica é de fato, de destruição completa do outro. A ideia é vencer o outro, esmagar, destruir, dominar - para isso é usado de todos os meios necessários. O que é interessante tomar de atenção, é que esse outro muitas vezes é alguém literalmente no mesmo grupo que o seu, então é só questão de tempo de se rachar, se criar frações, grupos dissidentes, etc.

É de se perguntar por que nós como movimento temos tanta dificuldade de criar relações inter-partidárias entre nós ? A crítica é importante demais para ser apenas uma arma de autodestruição.

3-Imitar a direita não funciona e não dá certo.

Dentro desse clima de “sou mais brabo que todo mundo”, existe essa crítica aos moderados, isto é, aos liberais e reformistas. Principalmente se você for marxista, você sabe muito bem por que existe essa hegemonia liberal. Eu sei que vocês sabem, não adianta esconder. Vocês entendem toda a parte da perseguição do Estado, o trabalho ideológico, etc, etc.

É muito mais fácil uma pessoa ser liberal, por uma série de razões, do que ela acordar e ser uma marxista-leninista. E veja, é o esperado, você nasce numa sociedade liberal, a sua vida toda você só ouve ideias liberais, tudo o que você pensa, fala, consome e produz é liberal, é claro que você muito provavelmente vai ser liberal.

Dentro desse mesmo escopo, se uma pessoa provavelmente vai ser sempre liberal dentro da democracia burguesa, faz sentido que mesmo quando ela encontrar problemas nesse sistema, o máximo que ela consiga pensar seja em reformar esse sistema.

Ela vai buscar soluções dentro do próprio liberalismo, porque essa é a visão de mundo dela.

Uma pessoa é liberal, conservadora, fascista, reformista, etc, porque de alguma forma, ela enxerga dentro dessa visão de mundo, por mais distorcida que possa ser, algo que a atende politicamente, isto é, que atende alguma necessidade dela.

Essa é a questão aqui : nós conseguimos fazer isso? Por incrível que pareça sim! Ou você acha que sindicatos, partidos políticos, coletivos, organizações de bairro, etc, surgem por mágica ? Ainda que todo anticomunismo seja forte desde a época de Marx, ele não vence a realidade. As pessoas se organizam em movimentos populares porque precisam. O trabalhador se junta com os colegas num grupo, num sindicato, porque ele precisa lutar por melhores condições de vida no trabalho.

Se depois ele vai concluir que ele é anarquista ou socialista, aí já é outra conversa - a questão é que a gente precisa observar esse movimento do real primeiro para depois dar o foco na questão ideológica.

Qual é a razão da gente ter menos adesão? É porque, em primeiro lugar, a burguesia domina o Estado, eles tem muito mais recursos que a gente; segundo lugar, é porque eles têm uma organização política muito mais bem institucionalizada (no sentido de ter uma tradição de práticas de organização social) que a gente; Mas mais importante, nós não temos uma unidade organizativa, não há uma integração entre diferentes movimentos com práticas, táticas, recursos, etc - coisa que a direita por mais que briguem entre si, sempre consegue organizar.

Aqui eu quero que você perceba o seguinte : se na esquerda o discurso político é o mesmo da direita, por exemplo, se a esquerda quer combater o identitarismo tanto quanto a direita, com quem você vai se juntar ? Com os caras que são deputados, governadores, tem uma máquina partidária enorme, tem contato com igrejas, etc, ou com meia-dúzia de jovens que você nem sabe se existe por trás de perfis de redes sociais ?

Ou vocês já esqueceram do Freixo perdendo eleição no Rio de Janeiro ? O cara que até esses dias era do PSOL, amigo de Marielle Franco e tudo - Para ganhar eleição começou a soltar um monte de discurso reacionário para ver se colava. Resultado : não se elegeu.

Por isso assim, apelar por exemplo, para discurso anticiência, transfóbico, racista, etc, de forma socialmente aceita dentro da esquerda - Você deixa de ser uma força politicamente oposta à direita quando defende as mesmas coisas que eles, e entre direita e pseudo-direita com discurso “esquerdista”, vence sempre a direita.

O Uber engenheiro precarizado que tanto se fala por aí em lives “sobre o novo trabalho”, se você só reforça a crença dele que ele não consegue emprego “porque lacração”, ele vai para a direita que defende o extermínio das minorias, ou para uma esquerda que defende as pautas de minoria de forma envergonhada ?

Qual o outro problema de imitar a direita ? Eles têm discursos objetivamente falsos. Essa coisa de que o grande problema do mundo são [insira X minoria] é um discurso falso ou você acha que existe alguma verdade nesse tipo de discurso ? O problema do capitalismo não é o judeu internacional, a travesti mostrando a bunda na faculdade, ou sei lá, os sapos gays, é a lógica autodestrutiva e insustentável do próprio sistema.

Não só um eco com a direita que vai ser feito, mas como não vai ser resolvido nenhum problema. Proíbam o rebolado nas universidades, isso não vai melhorar nossa situação acadêmica brasileira - não faltam bundas na universidade, falta investimento público. A Rússia Czarista e a Alemanha nazista fizeram campos de extermínio o suficiente para matar todo tipo de minoria, nem por isso o capitalismo deixou de quebrar.

Nosso querido Brasil sequestrou, escravizou, prendeu e matou (e continua fazendo isso) os povos originários da América e de África, ainda com o sucesso do projeto supremacista e colonial, o país não deixou de ser ruim como é hoje. Retomar a verdade aqui é mostrar exatamente isso : que esse discurso falso serve apenas para manter o status quo como ele está. Uma travesti numa cota de universidade, um preto conseguindo comprar uma casa, uma mulher conseguindo uma creche para sua família, nada disso vai salvar o mundo - mas o vai tornar melhor - da mesma maneira que se todo espantalho reacionário fosse verdade, o mundo não deixaria de existir da forma que é.

É uma escolha sua : você quer tentar melhorar a vida das pessoas ou você quer caçar redemoinhos e piorar ainda mais o mundo ?

Dito tudo isso, você ainda perde base, vira puxado da reação, promove uma prática social que é ineficaz e fortalece o status quo. Parabéns, você é muito brabo.


4- Como se desmobilizar.

Essas semanas houveram mobilizações no Brasil todo por causas como o fim da fome, moradia e o fim da escala 6x1. O destaque que eu quero dar aqui é que nesse período o PCBR esteve mobilizado no Brasil todo. Ou seja, um partido revolucionário, num país como o Brasil, com todo seu histórico de repressão, foi capaz de mobilizar nacionalmente protestos, atos, ocupações, etc.

O que dominou o debate público todo esse tempo ? Como a esquerda morreu, perdeu o rumo, não tem mais base social, caiu no identitarismo, blá-blá-blá. Inclusive, esse discurso, por parte de lideranças importantes do PCBR, como Jones Manoel e Heribaldo Maia .

E claro, um monte de gente do PDT, PSOL, PT, etc, etc, veio com essa mesma conversa sobre “os rumos da esquerda”, teve uns debates em todo canal considerado de esquerda, o ICL promoveu dois debates sobre isso, tudo para chegar à conclusão que “estamos perdidos”, tem que mudar a comunicação, tem que deixar o identitarismo, tem que ser mais brabo, etc”.

Aí eu fico pensando, anos atrás, inclusive no auge da era Lula, era impossível imaginar que partidos como o PCBR existissem, muito menos, conseguissem essa mobilização popular que a gente viu nesses últimos anos. O próprio Jones destaca que ele teve uma votação expressiva quando foi concorrer à governador em 22. Isso acontecia há algum tempo atrás ? Não estamos claro, vivendo numa onda vermelha, mas com certeza é um avanço do cansaço generalizado do “só pode ser social-democrata, além disso é totalitarismo”.

Pensa comigo : você começa o seu trabalho de mobilização de forma mais concreta, organiza ato, organiza palestra, começa fazer jornal, faz greve, faz movimento estudantil, luta no movimento sindical, faz ocupação (o doido é que o próprio PCBR fez uma ocupação em Florianópolis ! Sim, no meio do sul do Brasil, conhecido por ser completamente bolsonarista), etc.

Aí você tem que ouvir por parte de suas lideranças, em eco com a direita inclusive, que não existe esquerda, que todo mundo é falso, mentiroso, que tá tudo dominado, não tem o que fazer, que a esquerda morreu, perdeu o rumo e um monte de lero-lero. Isso não é desmobilizante ?

Para que raios eu vou gastar meu domingo organizando protesto contra o 6x1 se a esquerda morreu, lá no congresso “o PT não faz nada” e o Lula não faz nada (ainda que o governo Lula seja QUALITATIVAMENTE MELHOR que o do Bolsonaro), “o PSOL virou reformismo” (o mesmo PSOL que abraçou o 6x1 e levou pro congresso, do Glauber Braga, da Sâmia Bomfim, Fernanda Melchionna, esse mesmo), se o outro pessoal que se diz radical não é radical de verdade (ainda que as ocupações, a luta agrária, etc, continue sendo tocada) ? Me diga, se tá tudo perdido, tem o que fazer ? Entende que mesmo depois de você tentar me dizer “dá para fazer X, Y e Z”, no final das contas, vai ser tudo em vão porque você já me disse lá atrás que nada presta ?

Nem tudo é merda.

Na era Bolsonaro-Temer, o mais incrível foi ter a UP ter conseguido surgir e o partido do Bolsonaro não; Foi a gente ver o próprio PCB ter crescido tanto e mesmo depois do racha, ter continuado sendo um partido político organizado. O MST se mantém firme e pressionando mesmo diante de ataques do congresso e recuos do governo petista e dá para ficar citando vários exemplos de luta sendo levadas à frente, apesar desse ar de marasmo generalizado. Auge da pandemia, era Bolsonaro, nós conseguimos conquistar o auxílio emergencial !!

Se o PT e sei lá quem mais, não é radical, não vamos ficar esperando radicalismo deles e ficar tomando eles como parâmetro do que é esquerda ou não. Deixa eles lá com seu Keynes, o importante é a gente ter o nosso Marx pronto para quando a gente tomar o poder conseguir industrializar o país todo. Se a gente toma um território, seja de forma democrática ou não, como a gente vai organizar esse espaço ? Vai ser chamando todo mundo de feio ?

Essa coisa do BPC que o governo propôs e o Jones começou a criticar, primeiro lugar, se usou disso para fazer terrorismo midiático, no sentido de criar um sentimento de caos generalizado, de que tá tudo perdido, o mundo vai acabar. Veja, é fato (basta ler o projeto de lei) que ele é um ataque ao BPC, e aí, a gente faz o quê?

    a)fica reclamando dizendo que todo mundo é mentiroso e não presta, a esquerda morreu, não tem o que fazer.

    b)organiza a sociedade civil para se mobilizar contra os cortes.

Qual opção vocês acham que foi tomada? Talvez o que deveria ser a grande diferença do marxismo com o discurso liberal, é que enquanto o discurso liberal vai se focar em fazer uma discussão sobre a corrupção moral das pessoas, o marxismo não liga para isso, ele estaria mais preocupado em como de fato, derrotar politicamente esse ataque ao BPC. A gente faz mobilização social, como ? Conversamos com políticos ? Organizamos atos ? Legalmente, tem o que possamos fazer também, podemos acionar advogados populares ? Quanto às estratégias não-institucionais, como a gente pode ajudar essas pessoas idosas e com deficiência que podem ter seu benefício cortado ?

Eu ligo se fulano, ciclano, mente ou deixa de mentir ? Ou se moralmente o beltrano acha imoral as pessoas terem vários benefícios sociais ? O interesse de fato, é, em primeiro lugar, se a gente sabe que isso vai ser ruim para gente, o que a gente pode fazer para garantir esses benefícios e como a gente expande eles ainda mais ?

A própria direita usou disso para promover pânico moral, nós realmente precisamos fazer esse eco com a direita ou propor soluções ? É objetivo, é uma medida draconiana que só serve para agradar o mercado de previdência privada - é uma merda, mas eu preciso ficar a somar nesse discurso de fim dos tempos ?

Existe um incêndio, todo mundo tá vendo que tá acontecendo, precisa jogar mais fogo no que já está queimando ?

De nada adianta ser um bom samaritano, preocupado com as pessoas, cheio de boas intenções, se nós não atuamos dentro da realidade para melhorar essa realidade. O cristão mais fervoroso com certeza vai te pedir para rezar e acreditar em Deus, mas nunca vai te tirar a responsabilidade de viver a sua vida.

Nem Deus não faz o trabalho sozinho.


5-O PT é um partido liberal e isso é ok.

Eu já expliquei que existe uma hegemonia liberal? Então, existe uma hegemonia liberal. O que é considerado “normal” é ser liberal, é isso o que isso quer dizer, isso significa que mesmo os trabalhadores vão ser parte da reprodução da ideologia liberal, que vão formar grupos sociais com ideias liberais, que vão surgir partidos populares com viés liberal, e por aí vai.

Isso é o esperado, é como chover no molhado, uma pessoa não vai se formar marxista por osmose, magia, tarot, ou sei lá - é preciso estudar marxismo, conviver com marxistas, ter um grupo de marxistas, etc. Qual é a doutrina econômica hegemônica das universidades? É marxismo? Não, é a economia política liberal, no máximo um Keynes.

O petista médio ser um liberal, não ter lá uma formação política muito boa (porque grande parte não é organizado e mobilizado e tal), ter posturas em média conservadoras, acreditar muito na boa vontade do mercado, que o grande problema do capitalismo é a ganância, e várias posturas, que para nós marxistas são conservadoras e ainda assim defender justiça social, emprego para todos, fim da fome, etc - isso é o esperado.

Não vai ser chamando todo mundo de feio e mentiroso, que a gente vai conquistar essas pessoas e mais importante, se elas se juntarem conosco em nosso projeto, elas precisam ter espaço para aprender, todos tem capacidade de estudar e mudar suas posturas. Se existe o interesse, não há nada de errado um liberal querer estudar Marx e mudar sua postura liberal. E se ele não quiser, ok, se nos ajudar, ótimo!; se não ajuda, que não atrapalhe e a luta de classes que segue, nós aqui e eles lá e tá tudo certo.

Agora essa caça às bruxas para ver quem é mais brabo e pior, ficar cobrando de quem nem é tão de esquerda assim, posturas mais radicais, é contraprodutivo, para dizer no mínimo.

Revolução não é o que o PT defende e deixe eles lá com isso.


6-Por que é tão importante a esquerda morrer?

Se a gente for tentar buscar dentro da tradição do que a gente chama de esquerda, seja uma visão de que ela são os povos oprimidos, seja naquela definição feita na revolução francesa, qual seria o principal cerne dessa posição ?

A constatação, baseada na razão, isto é, numa conclusão que todos conseguem verificar, de que as pessoas que constroem a sociedade, que são base da nossa civilização, não recebem o que precisam. Que todo ser humano, por mais que seja defendido que é igual, não recebe os mesmos benefícios, e pior, sequer é capaz de decidir a própria vida, já que existem estruturas na sociedade que decidem a sua vida antes mesmo de você nascer.

Se você nasce preto no Brasil, você nasce com um alvo na suas costas por conta do projeto de genocídio negro brasileiro; se você cresce mulher, você se torna uma cidadã de segunda classe por conta do patriarcado; se você é trans, você é negado seu direito de existência e de expressão do seu gênero; se você é pobre é quase certo que você vai morrer de tanto trabalhar e nunca vai conseguir construir nada na sua vida, além de lucro pro seu patrão.

Nós, os oprimidos, tomamos a ciência em nossas mãos e revelamos essas estruturas, mostramos que elas são construídas, que o mundo já foi diferente e mudou, e pode mudar novamente e ser construído por nós.

Se pode ser mudado, algo pode ser feito hoje, algo pode ser construído agora, para que amanhã tenha uma trajetória diferente.

É isso que a esquerda defende, por que é tão importante matar ela ? Porque você retrocede toda a nossa capacidade de pensar para o modo religioso de ver o mundo. Enxergar o mundo como uma realidade parada do tempo que nunca muda independente do que a gente faça, que essas estruturas que nos oprimem vão existir eternamente e de que não há o que fazer.

Voltamos a rezar, a ter superstições, a esperar o divino, para que as coisas tenham alguma mudança para melhor. Num mundo como esse não vai importar se organizar, discutir, construir teorias, trabalhar com ciência para aprimorar nossa vida, vai ser mais importante achar um bom senhor feudal, piedoso o suficiente, que não nos maltrate demais.

Toda essa febre de BET, não é só um fenômeno que pode ser explicado de forma clínica, é um problema social que expressa a incerteza causada pela vida onde o emprego não é formal, não se tem estabilidade de onde vai morar ou se vai comer, de violência no campo e na cidade só cresce, de estudo que não leva para lugar nenhum, etc. Se numa determinada sociedade, se valoriza o trabalho científico, as pessoas vão planejar no longo prazo estudar porque elas sabem que se gastar 10 anos estudando, vão conseguir algum emprego decente.

Agora, hoje em dia, ninguém se aposenta, acabou praticamente o serviço público, todo trabalho é bico - tão bom quanto ficar tentando fazer dinheiro na rua é ficar apostando no tigrinho, porque talvez se ganhe alguma coisa - e a gente sabe que nos dois casos, quem vence é o dono do cassino.

É importante destruir toda noção de que existe mudança. Esse é o ponto. Se nada muda, não tem o que se fazer. Aliás, até tem né ? Rezar.

Se a direita se beneficia desse discurso religioso, isso é fato, ele serve para congelar a história. Agora a esquerda adotar esse discurso, só serve para fazer eco com a direita, é um desrespeito com quem milita, seja aqui no Brasil, seja pensando no movimento internacional dos povos oprimidos.

Fim…

É isso por hoje.
 
referencias
 

1 Vou recomendar ACTUALLY, N. A quick rundown on accelerationism. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lrOVKHg_PJQ&pp=ygUOYWNlbGVyYXRpb25pc20%3D>. Acesso em: 27 dec. 2024.

ROSENFELD, J. accelerationism. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/accelerationism>.

 
2  Estou desconsiderando completamente o que foi dito ou não dito no twitter, e se eles ainda me perdem tempo com twitter, que é basicamente a rede do Elon Musk, possível ministro de Trump, paciência.

3  Perfil da Ocupação Carlos Marighella. Disponível em: <https://www.instagram.com/marighella.sc/>. Acesso em: 27 dec. 2024.




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