https://sam-tail.itch.io/the-fixer
INÍCIO.
A origem desse texto vem de uma angústia pessoal. Sabe, desde muito cedo eu sempre pensei a filosofia como uma, em última instância, atividade prática de entender o mundo para viver melhor nele.
Aí eu faço isso com mídias que eu interajo na vida, e sinceramente, esse é o tipo de coisa que eu gostaria de ver mais.
As pessoas discutem sobre banalidades, sobre bunda, sobre jogos, sobre filmes, sobre música, sobre algum terceiro (fofoca), etc, etc - Só que existe uma certa cultura de não se engajar de forma mais profunda no que se tem contato.
Esse é o tipo de coisa que venho notando há um certo tempo : é possível tirar uma boa reflexão mesmo de uma obra muito ruim.
Superbad, por exemplo, pode ser um filme lido como uma boa fotografia daquilo do “se tornar homem” ou se “tornar mulher” - quando você vê personagens tentando se encaixar em determinados padrões de gênero para se tornarem parte da sociedade.
Pode ser só um filme de comédia bobo dos anos 2000 ? Pode e é, isso não tira o fato de que no filme existe esse comentário social.
Como sociedade seria muito saudável se a gente tivesse essa capacidade crítica, isso não tira o prazer artístico da obra - muito pelo contrário, reassistir passa ser uma necessidade.
No caso do jogo, pretendo usar alguns aspectos do jogo para discutir algumas questões sociais. Então vai ter spoilers parciais ou completos.
Blank Generation
Juventude é uma coisa recente na nossa história. Assim como a infância antigamente, os jovens eram vistos como pequenos adultos, não como seres em desenvolvimento.
O “problema” jovem, como uma questão, aparece com o surgimento da escola pública (ou você acha que os filhos dos ricos trabalham ?), com o surgimento da família nuclear (pai, mãe, filho, filha).
Por brevidade, prefiro não me alongar tanto nessa conceituação, eu só quero que você tenha noção que historicamente, o jovem, esse ser que não é adulto e nem criança, é recente.
Como estamos falando de economia é importante que a gente observe o papel do jovem nesse sistema econômico. Isso é essencial para que a gente compreenda um pouco do nosso mundo atual.
A partir dos anos 70, a economia abandonou o modelo de desenvolvimento do New Deal - ela se financeirizou e o grande foco passou a ser uma economia fictícia, baseada na especulação financeira, junto disso, uma nova política se estabeleceu. O neoliberalismo vem como uma economia política pensada para maximizar os lucros da classe burguesa, isto é , cortando gastos públicos, privatizando as empresas públicas, etc - o inferno que se estabelece hoje foi construído nessa época.
O mais afetado por isso tudo foi a figura do jovem. Os empregos formais diminuíram, a educação pública foi destruída, a opressão policial aumentou, etc. Então você tem uma situação, por exemplo, que a previdência social não existe ou é privada, um jovem com uma renda instável e vinda do trabalho informal, isto é, você retira toda capacidade de construção de uma vida e diz “é cada um por si”.
O jogo
É nesse contexto social mais ou menos que The Fixer começa. Não é muito claro se houve ou está havendo uma guerra mundial, mas aconteceu uma outra pandemia além da Covid, e “coincidentemente”, matou todos os adultos acima de 40 anos (o que é bem suspeito).
Com o governo completamente enfraquecido (quase tudo foi privatizado), recaiu nas mãos das grandes empresas resolverem esse problema de saúde pública.
E como um passe de mágica, não é que elas tinham a vacina ? Por que eu tô fazendo essa acusação ? Porque o jogo consegue te dizer isso de forma implícita.
Imagine só o lucro de você ter o monopólio da saúde, literalmente ter o controle político, social, ideológico, de um país ? Nós não estamos nem falando de empresas que competem entre si - mas de um mega monopólio com mais poderes que o Estado.
Assim, do jeito que tô escrevendo aqui o jogo é uma tese de doutorado. Mas ele, no limite, é um jogo adulto - só que ele põe nas situações de se expor, de ter que fazer coisas impróprias para conseguir dinheiro, através desse cenário econômico. Não é uma questão de você de fato querer ter que se esfregar em bêbados no bar porque quer, mas exatamente, porque não há escolha - o seu poder de decisão é completamente limitado por conta das condições econômicas.
No jogo, você era um rapaz ou menina (dá para escolher o gênero inicial), que sofreu um acidente muito grave a ponto de ficar em coma. Em uma tentativa desesperada, sua irmã vende seu corpo para uma pesquisa secreta de um monopólio de saúde. Eu acho que na escolha inicial do gênero, toda interação sua como alguém inicialmente homem, agora num corpo feminino, é muito interessante.
Tem coisas que você simplesmente não entende porque você cresceu como “homem”, interações com outros homens são diferentes, as interações que se tem com meninas é diferente
O propósito da pesquisa é criar corpos modificados sintéticos de jovens para as elites mais ricas se tornarem basicamente imortais. No final das contas, você é só um experimento.
Começa com o jogo te colocando para morar de aluguel e sem dinheiro. Você é uma menina jovem (eles te obrigam a ser) e precisa arranjar um trabalho para conseguir dinheiro - já sabe para onde isso vai te levar né .
O que me chamou atenção, é que aos poucos você vai sendo puxada, economicamente, para empregos e funções sociais, que envolvem a prostituição. Inclusive por ter um corpo feminino.
Eu digo isso porque os homens do jogo, os mais velhos têm renda ou por fazerem parte do governo privado, ou por literalmente serem burgueses. Os meninos jovens, pelo menos a maioria deles, parece que em grande parte são pequenos delinquentes.
Você pode virar modelo (sem ser erótica, num momento inicial), dá para você catar lixo para reciclagem e até virar uma garçonete. Mas nada disso é suficiente para você conseguir pagar o aluguel que você precisa pagar a cada 2 semanas.
E veja, você tem necessidades de alimentação, tem status de stress e etc, tudo isso, essa situação de desespero mesmo, leva você, por exemplo, no seu trabalho de garçonete andar com menos roupa, aceitar proposições sexuais dos clientes, tudo para ter uma renda extra.
O que me chamou atenção é de certa forma esse peso na narrativa. A título de contexto, muitos desses jogos, meio que te deixam ser mais “pervertida” porque sim, não tem uma justificativa necessariamente. Nesse jogo, existe uma necessidade econômica, você precisa ir pro ponto lá na parte “suja” da cidade, porque lá é onde te pagam mais.
Você precisa formatar seu corpo, sua forma de vestir e agir, para conquistar o maior número de clientes possível.
A origem desse texto vem de uma angústia pessoal. Sabe, desde muito cedo eu sempre pensei a filosofia como uma, em última instância, atividade prática de entender o mundo para viver melhor nele.
Aí eu faço isso com mídias que eu interajo na vida, e sinceramente, esse é o tipo de coisa que eu gostaria de ver mais.
As pessoas discutem sobre banalidades, sobre bunda, sobre jogos, sobre filmes, sobre música, sobre algum terceiro (fofoca), etc, etc - Só que existe uma certa cultura de não se engajar de forma mais profunda no que se tem contato.
Esse é o tipo de coisa que venho notando há um certo tempo : é possível tirar uma boa reflexão mesmo de uma obra muito ruim.
Superbad, por exemplo, pode ser um filme lido como uma boa fotografia daquilo do “se tornar homem” ou se “tornar mulher” - quando você vê personagens tentando se encaixar em determinados padrões de gênero para se tornarem parte da sociedade.
Pode ser só um filme de comédia bobo dos anos 2000 ? Pode e é, isso não tira o fato de que no filme existe esse comentário social.
Como sociedade seria muito saudável se a gente tivesse essa capacidade crítica, isso não tira o prazer artístico da obra - muito pelo contrário, reassistir passa ser uma necessidade.
No caso do jogo, pretendo usar alguns aspectos do jogo para discutir algumas questões sociais. Então vai ter spoilers parciais ou completos.
Blank Generation
Juventude é uma coisa recente na nossa história. Assim como a infância antigamente, os jovens eram vistos como pequenos adultos, não como seres em desenvolvimento.
O “problema” jovem, como uma questão, aparece com o surgimento da escola pública (ou você acha que os filhos dos ricos trabalham ?), com o surgimento da família nuclear (pai, mãe, filho, filha).
Por brevidade, prefiro não me alongar tanto nessa conceituação, eu só quero que você tenha noção que historicamente, o jovem, esse ser que não é adulto e nem criança, é recente.
Como estamos falando de economia é importante que a gente observe o papel do jovem nesse sistema econômico. Isso é essencial para que a gente compreenda um pouco do nosso mundo atual.
A partir dos anos 70, a economia abandonou o modelo de desenvolvimento do New Deal - ela se financeirizou e o grande foco passou a ser uma economia fictícia, baseada na especulação financeira, junto disso, uma nova política se estabeleceu. O neoliberalismo vem como uma economia política pensada para maximizar os lucros da classe burguesa, isto é , cortando gastos públicos, privatizando as empresas públicas, etc - o inferno que se estabelece hoje foi construído nessa época.
O mais afetado por isso tudo foi a figura do jovem. Os empregos formais diminuíram, a educação pública foi destruída, a opressão policial aumentou, etc. Então você tem uma situação, por exemplo, que a previdência social não existe ou é privada, um jovem com uma renda instável e vinda do trabalho informal, isto é, você retira toda capacidade de construção de uma vida e diz “é cada um por si”.
O jogo
É nesse contexto social mais ou menos que The Fixer começa. Não é muito claro se houve ou está havendo uma guerra mundial, mas aconteceu uma outra pandemia além da Covid, e “coincidentemente”, matou todos os adultos acima de 40 anos (o que é bem suspeito).
Com o governo completamente enfraquecido (quase tudo foi privatizado), recaiu nas mãos das grandes empresas resolverem esse problema de saúde pública.
E como um passe de mágica, não é que elas tinham a vacina ? Por que eu tô fazendo essa acusação ? Porque o jogo consegue te dizer isso de forma implícita.
Imagine só o lucro de você ter o monopólio da saúde, literalmente ter o controle político, social, ideológico, de um país ? Nós não estamos nem falando de empresas que competem entre si - mas de um mega monopólio com mais poderes que o Estado.
Assim, do jeito que tô escrevendo aqui o jogo é uma tese de doutorado. Mas ele, no limite, é um jogo adulto - só que ele põe nas situações de se expor, de ter que fazer coisas impróprias para conseguir dinheiro, através desse cenário econômico. Não é uma questão de você de fato querer ter que se esfregar em bêbados no bar porque quer, mas exatamente, porque não há escolha - o seu poder de decisão é completamente limitado por conta das condições econômicas.
No jogo, você era um rapaz ou menina (dá para escolher o gênero inicial), que sofreu um acidente muito grave a ponto de ficar em coma. Em uma tentativa desesperada, sua irmã vende seu corpo para uma pesquisa secreta de um monopólio de saúde. Eu acho que na escolha inicial do gênero, toda interação sua como alguém inicialmente homem, agora num corpo feminino, é muito interessante.
Tem coisas que você simplesmente não entende porque você cresceu como “homem”, interações com outros homens são diferentes, as interações que se tem com meninas é diferente
O propósito da pesquisa é criar corpos modificados sintéticos de jovens para as elites mais ricas se tornarem basicamente imortais. No final das contas, você é só um experimento.
Começa com o jogo te colocando para morar de aluguel e sem dinheiro. Você é uma menina jovem (eles te obrigam a ser) e precisa arranjar um trabalho para conseguir dinheiro - já sabe para onde isso vai te levar né .
O que me chamou atenção, é que aos poucos você vai sendo puxada, economicamente, para empregos e funções sociais, que envolvem a prostituição. Inclusive por ter um corpo feminino.
Eu digo isso porque os homens do jogo, os mais velhos têm renda ou por fazerem parte do governo privado, ou por literalmente serem burgueses. Os meninos jovens, pelo menos a maioria deles, parece que em grande parte são pequenos delinquentes.
Você pode virar modelo (sem ser erótica, num momento inicial), dá para você catar lixo para reciclagem e até virar uma garçonete. Mas nada disso é suficiente para você conseguir pagar o aluguel que você precisa pagar a cada 2 semanas.
E veja, você tem necessidades de alimentação, tem status de stress e etc, tudo isso, essa situação de desespero mesmo, leva você, por exemplo, no seu trabalho de garçonete andar com menos roupa, aceitar proposições sexuais dos clientes, tudo para ter uma renda extra.
O que me chamou atenção é de certa forma esse peso na narrativa. A título de contexto, muitos desses jogos, meio que te deixam ser mais “pervertida” porque sim, não tem uma justificativa necessariamente. Nesse jogo, existe uma necessidade econômica, você precisa ir pro ponto lá na parte “suja” da cidade, porque lá é onde te pagam mais.
Você precisa formatar seu corpo, sua forma de vestir e agir, para conquistar o maior número de clientes possível.
O que se faz numa situação dessa ? A gameplay do jogo em si não te oferece uma opção explicitamente para formar grupos, etc - mas é claro, que as relações sociais, as amizades, os clubes de dança, os esportes, é exatamente, essa ressocialização que dá uma alternativa para esse sistema - isto é, uma sociabilidade baseada nas comunidades…um comunismo ?