Por que é tão fácil ser burro ? Ou porque você acha que frase de efeito é pensamento complexo.


O grande assunto do momento hoje é a inteligência artificial. No meio de umas discussões neo-ludistas e o pânico moral sobre as perderem seus empregos (como se alguém de fato tivesse um emprego) - tem uma questão que passa batido para grande maioria das pessoas : essa coisa artificial é de fato, inteligente ?

Para entender a inteligência artificial não acredito que precisamos entrar nos pormenores técnicos, até porque eles tendem a mudar muito rapidamente, mas acredito que seja necessário tentar entender algumas noções básicas de como ela funciona.

Como essa merda e outras coisas funcionam

O primeiro passo que precisamos fazer é sair do ambiente da computação. Por que ? Os princípios de funcionamento das máquinas não está preso a elas, elas não são mais do que produto de criações humanas.

Por mais que a automação produza resultados “sozinha” (jajá vamos entender as aspas), ela não acontece sem uma intervenção humana inicial. E talvez o conceito mais complicado para as pessoas do nosso tempo entenderem é que o mundo funciona sem elas. “Funciona” num sentido de que o vento vai sobrar mesmo depois que a humanidade desaparecer, a terra continua girando e o sol continua brilhando.

Isso significa que a natureza também funciona seguindo determinadas leis, como a lei da gravidade, da termodinâmica, etc, etc. Logo, é possível de certa maneira, “prever” o comportamento de fenômenos na natureza, já que eles seguem essas leis gerais. Quando você pensa numa ferramenta como o martelo, ele é uma ferramenta que segue a fórmula mais básica da física :  força = massa x aceleração. Ou seja, se você mover um objeto pesado numa alta aceleração, você consequentemente terá mais força como resultado.

Com essa compreensão, por exemplo, que se foi possível inventar o martelo e aprimorá-lo depois, com ferramentas mais pesadas, como a prensa, o trator com aquela bola de aço, etc. Mesmo a flecha, a bala, míssil, segue esse mesmo princípio básico. Através da compreensão do mundo a sua volta que o ser humano foi capaz de criar ferramentas para interagir com esse mundo.

Um objeto simples como óculos é uma tecnologia que vem do estudo da óptica e do olho humano, de como a visão humana funciona. Isso é importante de compreender, porque com o computador não é diferente, não se trata de magia o seu computador conseguir realizar determinadas tarefas “sozinho”. 

(Gente do céu, a realidade é física, não mágica !! Não é um espírito que move o mundo !!)

De uma atualização simples do sistema a um navegador de internet, de um algoritmo de rede social para um algoritmo gerador de imagens, tudo isso vem em código - e a gente sabe, que o código não é nada mais que uma “linguagem do computador” criada pelos humanos para automatizar processos de cálculos. Computadores são calculadoras, se uma imagem do seu monitor aparece com determinadas cores e tons, é porque as cores são calculadas, da mesma forma, que uma câmera que identifica o seu rosto, busca determinados padrões para fazer essa identificação.

E a gente volta pra falar das aspas em “sozinha”. Veja, nenhuma ferramenta, especialmente ferramentas produzidas pela humanidade, funciona 100% sem nenhuma intervenção humana. No caso da IA, logo na parte do treino, ela não é capaz de obter os dados e categorizá-los sozinha - é preciso que humanos MANUALMENTE categorizem as informações para um padrão que aquela máquina consiga processar. Só nisso já tem uma mão de obra precarizada fazendo esse tipo de processo.

Segunda questão, é que para uma IA funcionar, ela precisa em primeiro lugar ser programada por alguém. Mesmo o código gerado pela IA, na verdade, são códigos que ela foi treinada por humanos. Passando por tudo isso, ainda sim ela não faz tudo sozinha - no caso do Chat GPT, a inteligência artificial ainda precisa do prompt do usuário para ela fazer qualquer coisa.

O que uma máquina é, numa definição bem marxista, trabalho morto objetificado. Do martelo ao computador, ali tem conhecimento humano, ali tem o trabalho da humanidade para que aquele objeto exista. O próprio “estilo ghibli” não é algo criado individualmente pelo Miyazaki, ele tem outros desenhistas, muitos inclusive que nem trabalham mais para ele, que nunca vão ser reconhecidos como ele. Sem contar os fãs, e esses fãs desenhistas produzem arte inspirada nesse estilo de graça !!

Do martelo à IA, tudo é produto coletivo, mas controlado por quem nunca contribuiu para criá-lo.

Fato é, que o conhecimento humano, a cultura, etc, são criações coletivas, quem de fato está roubando a humanidade de suas próprias criações é quem põe essa barreira em tudo que é produzido - a burguesia. Uma fábrica não deveria ser exclusivamente da classe burguesa, mas sim, deveria estar a serviço da humanidade. Deveríamos deixar de assistir filmes, por que de repente, existe uma pessoa com um papel, diz que é dono dos filmes e que precisamos pagar um pedágio para assistir ? Ou deixar de ler um artigo acadêmico por que alguém disse que aquele conhecimento é restrito para quem pode pagar ?

A discussão real é sobre quem domina os meios de produção, não se fulano pecou porque fez um filtrozinho para postar no Instagram. Mark Zuckerberg de repente pode baixar livros no Anna’s Archive e o estudante de medicina que não tem condição de pagar em livros de 500 reais não pode.

Você não pensa mais, nem escreve, nem desenha.

Mas veja, tudo isso que eu disse é muito complexo e tal, e eu acredito que muitos de vocês não faziam ideia do que era assim antes de eu fazer essa descrição. O meu ponto em explicar isso é demonstrar simplesmente que quando nós usamos as ferramentas, na grande parte do tempo, nem sequer estamos cientes de como elas funcionam.


Por um lado, num lado prático, para usar uma lâmpada, eu não preciso saber do funcionamento da eletricidade, de como a luz é produzida, etc - por outro lado, isso cria uma certa alienação, no sentido mais marxista possível, como não entendemos mais como aquela ferramenta funciona ou as questões mais elementares do funcionamento disso que chamamos de realidade, aquilo aparece como algo mágico, místico.

Então, você aí, quando usa uma rede social, um computador, um navegador de internet, um celular, e tal, você não enxerga isso como uma mera ferramenta, ou como a parte morta da relação, você acaba por ser submetido à lógica da máquina e se transforma, no que Berardi vai chama de sujeito autômato.

Você se torna um mero objeto que repete comandos - não há uma grande diferença entre um usuário que passa o dia rolando na rede social e repetindo frases, de um bot que se treina com aqueles dados e que repete frases geradas nos comentários. A questão da IA nesses últimos anos, não é tanto que ela se tornou esperta demais, é que nós emburrecemos demais (A IA do Musk - Grok AI, com certeza parece mais esperta que um usuário médio do Twitter).

A nossa capacidade de escrita se reduziu, o nosso gosto por arte se tornou cada vez mais clichê - por isso seu amiguinho soltando termos de filósofos famosos parece genial e seu gerador de imagens consegue gerar imagens genericamente bonitinhas. O que de fato acontece, é que nós humanos estamos ficando cada vez mais parecidos com máquinas.

Um meme é um excelente exemplo disso : não são nada mais que repetições regurgitadas de ideias presentes no imaginário das pessoas. Você consegue encaixar a imagem da menina na frente do incêndio em 5000000 situações diferentes, porque ali tem um padrão de pensamento específico que aquela imagem pode ilustrar.

O que você repete com o meme, é em comparação, um código, uma programação. Ou você está gastando 3 horas pensando se vai repassar um meme ? Por isso, por exemplo, é tão fácil encaixar o meme do wojak vs chad em trocentas situações diferentes - é uma forma de pensar que se repete.
 
Por que o clichê funciona ? Essa é uma questão pouco explorada em algumas discussões sobre IA e internet, o clichê funciona precisamente porque, em algum ponto na nossa história, nós deixamos de tratar do ser, para o ter e deslizamos para o parecer. A imagem ganhou mérito máximo de estatuto de verdade. Na política, por instância, quando os militantes liberais webcomunistas vem assediar pessoas por usarem filtros (porque é exatamente isso que é o treco que  Open IA faz com o “estilo ghibli”), não importa tanto que aquilo é ineficaz, que cause um desconforto e discussões desnecessárias sobre a culpa de viver no capitalismo, a questão é parecer alguém que se importa, é mera sinalização de virtude de gente que não deve nunca ter doado nada na sua vida.
 

Um exemplo muito interessante é a "fala rádio" do Bumblebee dos filmes dos Transformers. Ele recorta frases de filmes, séries, etc, e faz um tipo de colagem para falar determinadas coisas - de fato, falar ele não fala, mas ele usa dessas frases para falar por ele - ele não tem uma voz própria.
 
Não tem diferença nenhuma de quem é contra as pessoas usarem o iphone, ou carros de gasolina, ou das pessoas tomarem banhos longos - não resolve o problema, e é mera performance e sinalização de virtude.

A questão não é sobre efetivamente organizar a classe dos trabalhadores intelectuais que vão perder empregos por conta da IA, não nem sobre responsabilizar as empresas de inteligência artificial - É sobre se parecer virtuoso.

Descrevendo dessa forma, parece algo simples e até bobo demais, mas funciona. Tem gente que se elege com esse discurso vazio, tem gente que é pago para produzir conteúdo justamente porque é esse tipo de santo, porque repete o que o público quer ouvir como um bom cãozinho - ainda que o público esteja errado ! Ou seja, se tá na “moda” atacar pessoas trans, é “Ok” ficar a cada 5 minutos falando mal de pessoas trans; se ser racista tá em alta, por que não criar leis racistas também ? Quando convém, de vez em quando se solta um discurso mais progressista porque naquela hora tá na moda !!

Por isso não adianta, é preciso estudar para quebrar as correntes da alienação, é preciso tomar os meios de produção - as formas de produzir a vida. Ferramentas como IA podem ser úteis — assim como um martelo pode construir uma casa ou esmagar um crânio. O problema não é a tecnologia, mas quem a controla e como nos tornamos meramente objetos diante dela.

Enquanto discutimos se IA rouba empregos ou não, esquecemos que já roubaram de nós a capacidade de criar. A saída não é proibir as máquinas, mas tomar o que nos foi tomado: os meios de produzir conhecimento, arte e vida — sem pedir permissão do CEO do momento.
 
 
Ghost