Só com identidade - um debate sobre o conceito de identidade na política

 

Todo tipo de texto (leia-se filmes, vídeos e mais) sobre a extrema-direita tem um ponto comum que muitas vezes passa despercebido - a capacidade de se criar uma comunidade.


Ainda que as crenças sejam baseadas em literalmente maluquices, existe uma necessidade de socializar que supera a coerência ideológica da crença. Ela precisa ser coesa para ter uma estrutura, mas não precisa da coerência, isso pode ser ignorado desde que a questão social esteja bem resolvida.


Quando a gente olha tanto para o fascismo clássico, para o neoliberalismo e para o neo-fascismo atual, uma coisa que eles têm em comum é um conjunto de mitos fundadores que possuem algum nível de evidências anedóticas, que não necessariamente refletem a realidade por completo.


Um exemplo atual, é essa ideia de identitarismo. Veja, primeiro que ninguém tem um conceito fechado do que de fato isso é, só por isso, já cria uma pareidolia conceitual, onde cada um enxerga uma coisa com as distorções da sua percepção. Identitarismo pode ser petismo, como lutar por cotas, ou sei lá, ser antirracista.


Pode-se dizer que é dar muita ênfase em políticas ligadas à identidade, mas se levarmos esse conceito no seu limite, fica muito claro que toda política diz respeito a uma determinada identidade, ou os diferentes grupos sociais não são considerados uma identidade ? A própria noção de nacionalidade é uma política de identidade. Porém, digamos assim, denunciar isso é como chover no molhado, já que toda política é baseada na identidade.


Tanto grupos supremacistas, como movimentos antirracistas, também trabalham com uma política de identidade, a primeira em defesa da supremacia branca, a segunda pela luta contra o racismo. A impressão que essa avaliação nos oferece, é que o denunciante do identitarismo, não quer tomar partido, não quer assumir que ele também tem uma identidade, uma estética, etc, então ele “muito inteligentemente” denúncia que todo mundo é identitário (como se ele não tivesse uma identidade e não se pautasse por isso).


A pergunta que a gente deveria realmente nos fazer é : o que você propõe então ? Se a política tem que se tornar essa coisa mágica que desconsidera identidade, o que se propõe para lidar com os conflitos na nossa sociedade ?


Veja, o Estado brasileiro teve uma política de eugenia, que se propunha trazer brancos europeus para embranquecer o Brasil. Isso por si só, já não é uma política de identidade ? Ou quando pensamos na escravidão de pessoas negras e pardas promovida pela Império Português e Brasileiro, isso não se encaixa como uma política de identidade ?


Considerando isso na nossa formação histórica, não seria justo lutar por melhores direitos para as pessoas que sofreram com essa política ? Isso seria política de identidade também ? Seria, a diferença é o lado e que a gente pelo menos é honesto sobre isso. É óbvio, por exemplo, que o movimento negro quer defender a população negra, ou movimento lgbtqia+ quer cuidar da população lgbtqia+.


Pense num sentido prático : como que eu vou fazer política pública sem considerar as diferentes necessidades da minha população ? Se eu preciso distribuir cestas básicas para quem precisa de uma dieta específica, eu preciso identificar quem precisa dessa dieta específica, é simplesmente desperdício de recursos não considerar a diferença.


O que fica claro, é que da mesma forma que toda política é coletiva, toda política diz respeito à uma identidade.


Questão é : qual lado você vai tomar ? É isso que o quem se diz tão crítico do identitarismo não consegue resolver. Uma outra definição de identitarismo que podemos considerar é com a ideia de subjetivismo - é você tratar a política como uma coisa que deve beneficiar ou excluir determinadas identidades baseado no seu gosto pessoal.


Oras, se é uma postura pessoal, que já tem um nome, subjetivismo, por que criar essa confusão com as políticas de identidade ? Se é política, como já deve ser algo que todo mundo concorda, é coletiva. Não tem porque querer confundir. Qual a grande diferença essencial ? Nós estamos do lados dos subalternizados, oprimidos e escravizados desse país.


Veja, no contexto que vivemos, nós sabemos da força que o supremacismo tem (que por sinal, não gosta de aparecer), tentar desqualificar e criar confusão conceitual, na prática, só fortalece o supremacismo.


Impedir os anti-racistas de lutar contra o racismo é ajudar o racismo, não acho que eu precise ir mais longe para te convencer disso.


Esse mito do identitarismo como uma política meramente individualista, como um “desvio pós-moderno”, é como eu disse “ela precisa ser coesa para ter uma estrutura” - isto é, o mito precisa ter uma consistência mínima para ter capacidade de reunir pessoas - é senso comum que justifica opressões.


Essa ambiguidade e essa confusão do conceito, cria uma situação onde se tem uma função muito clara de ser uma forma “educada” de reproduzir mecanismos de opressão (que são também mecanismos de poder). Você denuncia o “identitarismo”, com uma função de não ser explicitamente preconceituoso.


A confusão tem como função criar um consenso de que não devemos lutar por injustiças sociais. É isso que elege, ano após ano, políticos com plataforma EXPLICITAMENTE REACIONÁRIA, mesmo que isso seja contra a constituição (até porque, ela só é válida por algumas pessoas).

Ghost