Por que escrever contos ?

Se fala muito em desenvolvimento de teoria revolucionária, eu como uma pessoa que estuda ciências sociais tenho uma certa clareza da necessidade disso.

Na mesma medida que um engenheiro precisa dominar bem a física, a geografia, um pouco de arquitetura, para construir um prédio para determinado terreno com determinados fins, o cientista social vai precisar dominar bem estatística, sociologia, teorias sociais, geografia e arquitetura num contexto social, economia, etc.

Então, se faz necessário desenvolvimento de teoria por uma questão prática. Por exemplo, não adianta a gente fazer lutas sem calcular os possíveis resultados, e sem posteriormente fazer avaliações sobre.

Aí vem uma questão que eu acho interessante que é pensar como é o nosso processo de imaginação de um amanhã.

O futuro não existe, está por vir. Mas isso não impede a gente de imaginar ele. Isso acontece com uma boa dose de história, misturada com o que vemos no presente.

Nós até podemos nos enganar e dizer que o futuro existe, quando na verdade ele tem muito mais de ficção do que verdade.

Pegue uma história como da Cinderella, estou falando da versão da Disney mesmo. O que uma jovem que não se encaixa na sua própria família, nos anos 50 (ou no início do século XX, não sei quando foi lançado primeiro), tem de perspectiva de futuro ?

Talvez, olhando de forma tendencial e para o que acontece na maioria dos casos. Ela continua fazendo todo trabalho doméstico até ser literalmente vendida para alguém em troca de alguma coisa, faz um casamento arranjado, continua pobre, tem várias crianças e continua vivendo essa vida de dona de casa hiperexplorada.

E de certa forma, ela sabe que o “destino” dela, entre outras palavras, “é o que acontece com meninas como ela” e isso cria uma situação interessante, que o futuro é uma profecia auto-realizável, digamos assim.

Existe, claro, uma trajetória materialista que podemos olhar, medir, trabalhar com dados e observar. Mas saber que isso é uma tendência e muitos jovens já têm capacidade de fazer isso, dá a possibilidade de tentar mudar os futuros possíveis.

Claro, nos anos 50, ainda mais nos Estados Unidos, dificilmente nós iremos ver uma fantasia feminista ou queer (o que não significa que não existe) ultra disruptiva dos padrões da norma. Um conto popular, e por mais que a dona Disney tenha em mente mais dinheiro na sua conta bancária, precisa expressar os sonhos, as perspectivas, as ansiedades, as questões de uma sociedade.

A grande barreira da burguesia é criar algo popular que não expresse a realidade de exploração, e ainda que o faça, que nunca mostre uma saída.

No caso específico de Cinderella, o que fica muito claro é que a vida dela é uma situação quase sem saída e a única forma de acontecer alguma mudança é por meio de mágica.

O que prende uma mulher num relacionamento abusivo muitas vezes é a questão financeira, no caso, a relação da família de Cinderela é abusiva, não existe emprego, lugar para fugir, etc. Nem está nos planos de Cinderella fugir, não está no horizonte dela.

É uma perspectiva de como o mundo funciona idealista. O mundo não muda, não tem dialética, não tem como você fazer nada, a não ser que alguma força divina intervenha.

Para eu não ficar contando toda a história do filme, até porque eu acho que você também já sabe bem, é muito claro que a mensagem final do filme é “continue trabalhando, aguente tudo e torça para que algo mude, enquanto isso, fantasie com isso aqui”.

A mensagem do filme é extremamente conservadora, ela consegue capturar um problema comum da mulher, todas as suas ansiedades, sofrimentos e não diz que isso vai mudar, a não ser por magia, ou seja, por forças sobrenaturais.

Enquanto isso, sofra, não se rebele. Quando você olha a organização social da cidade da Cinderella, existe um elefante na sala que é o fato dela viver na cidade, no domínio de um rei e muito provavelmente estamos falando de uma família burguesa (no caso da família dela, por viver na cidade e tal).

De certa forma, se você for olhar bem, como a família trata ela, quais valores essa família valoriza, o que eles querem tanto(fama, dinheiro, etc), Cinderella acaba sendo uma crítica conservadora da burguesia !! As irmãs só pensam em ficar ricas, a mãe usa de Cinderella basicamente como uma empregada doméstica.

Cinderella representa muito uma ideia de pureza moral (e de raça, não é Disney ? Será que é por isso que ela é loira ?) e que essa pureza moral é de alguma forma recompensada de volta pelo mundo.

Entre outras palavras, Cinderella não é nada menos que o sonho molhado da sua tia evangélica bolsonarista conservadora, dona de casa que sofre todos os problemas do machismo, mas é antifeminista. É interessante porque essas pessoas esperam esse milagre divino, inclusive defendem os privilégios que possuem como se fosse uma bênção divina, ao mesmo tempo que são pessoas extremamente frustradas porque o mundo não funciona como na cabeça delas.

Não vai aparecer fada madrinha, mas o desejo de que apareça, hoje isso é muito expresso no ganhar na loteria ou em alguma aposta, faz com que essa pessoa se torne ressentida, frustrada, crie mecanismos de ódio por não conseguir o que quer.

A famigerada Karen é a Cinderella sem príncipe encantado, é a mulher que muitas vezes se casou por se casar, porque é o que “mulheres como ela” fazem.

Você consegue entender a necessidade da gente escrever histórias e ficções ? Isso molda perspectivas de vida, formas de enxergar as coisas, o que se espera do amanhã, como fazer as coisas.

Pode parecer óbvio, mas a gente lê histórias para tentar entender nós mesmos. Por que você acha que as pessoas lêem biografias ? Tem um elemento muito importante aqui que é guiar a nossa ação.

(Por esse e por outros motivos discutir religião importa, e é uma discussão que precisa ser retomada sem medo)

Então, é muito por isso que eu quero tentar começar a escrever histórias. Acho que quando a gente discute sobre futuros perdidos, é sobre uma falta de direção, falta de uma cultura revolucionária.

Por que você acha que as pessoas ainda sonham tanto com a União Soviética, China e Cuba ?

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