Por que defender o ateísmo ?


Se Deus existe ou não, pouco interessa para os ateus, a grande questão em relação à religião é a sua concepção cosmológica, isto é, de como o mundo funciona.

Quando um fenômeno desconhecido acontece, o religioso sabe exatamente o que aconteceu. Mesmo sem ter muitas informações, por que isso acontece ?

Dentro de um ponto de vista antropológico, o religioso é na verdade alguém que hiperracionaliza o mundo segundo uma lógica humana. Tudo tem uma causa, um motivo, já que o mundo é regido por forças divinas, o grande paradigma é entender os caminhos de Deus (ou força sobrenatural que você acredita reger o mundo).

E aqui, no meu ponto de vista, está a principal diferença entre um ateu e um religioso. O ateu consegue, primeiro assumir que existem fenômenos desconhecidos que merecem um estudo mais acurado para serem desvelados, que inclusive fogem da compreensão humana; Segundo, compreender que o mundo lá fora não segue a lógica humana e que a própria leitura que a gente faz do mundo, tem seus viesses, seus problemas epistêmicos, e que a maneira que a gente compreende o mundo, muitas vezes, é só uma abstração da nossa cabeça e por isso a gente precisa usar de métodos científicos para superar essas falhas.

Terceiro, existe um papel social da religião, principalmente quando a gente fala de religiões dominantes, um papel político de controle social. Quando o ateu, e aqui eu falo de ateu comunista mesmo (tô pouco me fudendo para os outros tipos), aponta : “Estão usando a sua fé para direcionar a sua ação política”. Ele está apontando justamente para o fato de que a fé religiosa tem um papel político e ideológico.

E por fim, a grande questão da religião é a gente compreender que a forma que a gente entende o mundo, molda a nossa ação política. O quão fácil é para você transformar uma religião numa arma de perseguição ?

O que mais complica a religião de mudar, é que muitas vezes, existe uma completa ignorância em relação à como se entende o mundo. Mesmo se Deus existisse, isso não mudaria o fato de que nós humanos entendemos o mundo com a nossa mente.

Se a gente não compreender como se formam as nossas abstrações mentais, não vamos compreender as distorções que nós temos ao enxergar o mundo. Por isso é tão fácil a religião católica olhar para a cor de pele negra e chamar de maldição.

Qual foi o critério que fez os negros racializados à serem considerados inferiores ? Qual foi o processo de pensamento por trás disso ? Hoje a gente consegue compreender que existe o papel da colonização, da criação do racismo para justificar aquela exploração.

Se você for colocar em uma escala de tempo histórico, demorou muito menos para a ciência compreender questões como o racismo, do que bem, até hoje a religião é usada para promover reacionarismo, ainda que existam algumas exceções.

A ciência hoje também é usada para justificar o racismo, mas a grande diferença é que enquanto na fé religiosa existe uma certa ambiguidade, porque a fé não segue necessariamente uma lógica, muitas vezes de fato existem vieses de raça em algumas religiões e suas interpretações (isso a religião nem chega a debater). Quando o cara usa do discurso científico para justificar racismo, FICA CLARO o viés racista e claro, é anti-científico, é provado que raça é uma abstração social e não existem raças humanas diferentes a ponto de ter uma classificação hierárquica de cada uma. O que te faz preto, asiatico, branco, etc, é muito mais a sua sociabilidade, do que a sua cor ou biologia.

E a grande questão é a questão política. Vamos dizer que a gente tem uma democracia, porém, cristã. Ou seja, o que guia os caminhos DO ESTADO, as leis, os crimes, etc, é o dogma religioso.

Você acaba dando para figuras religiosas poder PARA PAUTAR O ESTADO SEM SEREM ELEITAS. Mesmo que você tenha cidadãos de outras religiões, na perspectiva cristã desse Estado, o que eles fazem é errado, por ser de uma outra religião. Existe uma tolerância, por exemplo, da homossexualidade do cadomblé e na umbanda, que não existe na religião cristã.

A base da monarquia era o direito divino dos reis, esse direito divino era o que justificava e permitia que o Rei reinasse.

Só para dar uma escala, imagine que o rei tinha poderes divinos, ele não é só uma autoridade política (apenas), desafiar o rei era como desafiar a própria ordem divina universal. Com todos os seus defeitos, a democracia burguesa, tem mecanismos de contestação.

Se o rei achasse justo colocar o país numa guerra, o que você aqui faria ? Você só poderia obedecer, É COMO SE O PRÓPRIO DEUS ORDENASSE, ELE REPRESENTAVA DEUS NA TERRA. E se fosse um erro ? E se você não acreditasse que a guerra era justa ?

Aí você pode até dizer, e a religião do povo ? A religião do povo é perseguida, isso que você precisa entender, mesmo o cristianismo popular, sofre de perseguição das classes dominantes e existe acima de tudo, um grande esforço para domar a fé popular.

O Brasil é o país de Canudos e Pau de Colher, isso você não pode esquecer. A questão não é ser religioso ou não, a questão é o povo tomando as rédeas do próprio destino, criando uma religião própria, criando uma cultura popular, tudo isso fugindo do controle político das classes dominantes.

Nós aqui de baixo, começamos a ter fé por questões de tentar aguentar o mundo. Mesmo o homem mais ateu, cria seus mitos para tentar tornar a realidade mais amena. A religião popular acima de tudo, está para o churrasco do fim de semana, está para as férias anuais, está para o relaxamento no spa, está para o cigarro, está para o ópio.

É daí que vem a frase famosa mais mal-interpretada do mundo. Ópio é um anestésico e anestésico nós usamos para dor. Aguentar a escravidão, o sofrimento diário, a depressão, a expoliação, a fome, só é possível para o povo, que não tem dinheiro para comprar ópio, dar sentido para aquilo com a fé em algo divino. Algo que explique aquilo e diminua o sofrimento.

É isso que você precisa entender, ser ateu tem uma ligação direta de como você enxerga o mundo. Sem contar que ser ateu limpa o terreno, torna o debate político-social muito mais claro.

Como você me explica ter de um lado, ordens religiosas cristãs que são antro de reacionarismo e são usadas para perseguir as minorias ? Enquanto você tem outras, que são populares, que aceitam as minorias, que são anti racistas, que defendem uma sociedade mais justa e até uma filosofia revolucionária ?

É a luta de classes, de um lado, as classes dominantes e do outro a classe trabalhadora usando da fé religiosa para alcançar seus fins políticos. E não tem problema ser assim, é só a verdade.

Pode reparar, é problemático o Padre Júlio Lancellotti falar de política para o Estado de São Paulo, e não é quando RR Soares, Malafaia, etc, FAZEM A MESMA COISA, PORÉM DO LADO DAS CLASSES DOMINANTES.

Essa é a questão, uma questão de classe. É isso que anti-ateu não entende e quer ocultar do debate político. O ateu comunista não é contra a religião em abstrato, ele é contra justamente a fé religiosa instrumentalizada pela classe dominante contra a classe trabalhadora.

O cristianismo trabalhador e o cristianismo burguês SÃO RELIGIÕES DIFERENTES. E a gente consegue entender essa diferença, quem gosta de confundir o debate é justamente quem quer usar a religião como uma forma de ganhar dominação política contra as classes populares.

A comparação de religião com drogas é muito interessante, porque permite a gente entender o que ela faz do subjetivo ao social. Se você for observar mais de perto, se drogar com determinado fim, é uma forma de você instrumentalizar uma reação química do seu corpo.

Se você beber, sabendo que isso vai te relaxar, não é diferente de você rezar para se acalmar. Se você usa de remédios para se acalmar e voltar ao trabalho, para continuar passivamente servindo, não é diferente de quando você ouve de um líder religioso o que deve fazer da sua vida.

E que tal, você começar rezar para a gente conseguir construir um mundo mais justo ? Que tal você criar rituais de invocação para os deuses que nos ajudem a tomar o Estado ? Que tal você fazer terapia para ter força para fazer militância política ?

O ateu quase sempre, no contexto atual, é uma minoria, enquanto os religiosos são muito diversos e a maioria da população. É muito claro que a função que o ateu acaba desempenhando nos contextos religiosos é o de fazer a ponte entre diferentes religiões. JORGE AMADO ERA ATEU e foi ele que criou a lei de liberdade religiosa. É muito claro que mesmo em contextos populares, vai existir indisposições entre as diferentes religiões.
 
O ateu aparece como uma figura que pode ajudar a conciliar esses conflitos, até porque ironicamente, ele é o que tem mais disposição de tentar entender o ponto de vista das religiões. O que não falta são ateus que sabem mais da bíblia do que os cristãos. Seria muito interessante se os ateus também lessem sobre outras religiões. Mas note, o grande alvo é o cristianismo, justamente porque ele é a maior religião ocidental e é muito claro o uso político dele para manter o status quo, inclusive até mais forte que suas vertentes populares. Nós temos um Lancellotti para uns milhares de Macedo.

Mesmo o ateu mais fraco é um materialista nato, isso é uma coisa importante se a gente quer discutir o que fazer politicamente. O elemento ultra racionalista da ordem religiosa já tem uma noção predeterminada sobre o mundo, enquanto o cientificismo ateu consegue olhar para o mundo de fato e analisar o que de fato nós sabemos. É uma questão de epistemologia, uma questão de conseguir se adaptar melhor à realidade e de construir soluções para essa determinada realidade.

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