Silvio Almeida, Jones Manoel, Paulo Ghiraldelli e prática política.

Acho que a grande marca de 2024 até o momento vem sendo um sentimento geral de decepção. Não teve nada mais broxante para a esquerda de uma maneira geral, o primeiro ano de governo que não entregou quase nada do que prometeu e pior, cria políticas para se sabotar depois, vide teto de gastos e um modelo de gestão baseado na privatização do serviço público.

Se a direita se enfraqueceu com a eleição de Lula, ela facilmente se recuperou com um ano fraco do governo federal. E também a esquerda radical não conseguiu empolgar ninguém além da internet, ainda que aqui e ali, essa agitação tenha ajudado o pessoal a tentar se organizar em primeiro lugar. Querendo ou não, é um trabalho que precisa de algum tempo para dar resultado, mesmo que milagrosamente a gente acerte em tudo o que faz.

E não me entenda errado, já deu resultado, mas para fazer as mudanças políticas que a gente quer, precisamos ir bem mais longe que isso.

Esse marasmo político, essa austeridade, essa falta de mudança de uma forma geral, é o que permite quem estiver disposto a fazer um espetáculo ganhar destaque.

É a única coisa que se espera das eleições municipais, um grande espetáculo e depois a gente esquece que a política não acaba nas eleições. O show tem que continuar e vai continuar despeito das nossas vontades.

É nesse contexto que Silvio Almeida (do qual já fiz uns dois textos sobre, procura aí, bateu a preguiça) finalmente vai falar contra a privatização de presídios, depois de quase um ano que isso foi colocado como uma política através do programa de PPP.

Eu vou soar meio cínica, mas infelizmente é um pouco o estado das coisas neste momento, duvido muito isso resultar numa grande mudança no governo federal. A mídia burguesa é à favor desse tipo de medida do governo Lula, mesmo que isso possa causar um desgaste da base interna do governo e possa servir como uma boa oportunidade para minar o governo, eles querem que o governo continue com as PPPs. Por isso sabe, eu acho que você dificilmente vai ver alguma manifestação dela, a não ser em matérias muito limitadas em relação a isso.

Pode reparar que o Estadão fez questão de antagonizar Silvio e Haddad no seu editorial, ou seja, como quem quer mostrar a “bagunça” dentro do governo. Por mais que o Estadão seja favorável a esse tipo de política, a função dele como mídia burguesa, é tentar atacar o governo “progressista” para naturalizar pautas mais à direita.

Então, se o governo manter a política e se desgastar, para eles é bom porque é o que eles querem mesmo. Se deixar de fazer, também é bom, porque novamente, o governo se desgasta e perde popularidade de qualquer forma. Erro foi fazer uma política dessa.

E assim, o problema de um ministério como o do Sílvio, da Sônia Guajajara e da Anelle Franco, mesmo o ministério da Marina Silva, é que para eles conseguirem fazer o que o ministério deles supostamente deveria fazer, seria importante se eles tivessem mais força política, mais orçamento, uma organização ministerial que não criasse essas hierarquizações baseadas na renda, mas em uma perspectiva geral do que fazer, dentro de um projeto de país.

É difícil, no meu ponto de vista, você fazer políticas de direitos humanos se o seu ministério é o com menor orçamento, é o que menos pauta as decisões políticas do governo de uma forma geral, por exemplo.

O que Silvio no contexto de ministro pode fazer em relação a isso ? Veja que ele disse que esse tipo de privatização, através das PPPs são ilegais, mas boa parte das políticas do governo Lula são baseadas nesse tipo de política pública. O Estado se ausenta, deixa de atuar e passa suas atividades para essas empresas privadas administrarem.

Se isso é ilegal, quer dizer que o governo Lula está todo comprometido ? Eu fico pensando se Silvio tem força política para fazer esse embate e se isso não vai terminar com ele saindo do governo.

Aí você tem duas posturas muito distintas em relação a isso : É muito claro que o Jones está tentando usar isso para criar uma mobilização popular, tentando fazer inclusive quadros rivais da esquerda petista (mesmo dentro dela), se investirem num projeto fora do lulismo; Paulo Ghiraldelli que odeia Silvio, inventa um monte de apelido à Silvio, defende que PPP não é privatização, acredita que o errado é Silvio e Lula, Alckmin e Haddad estariam incontestavelmente certos. Veja, Paulo enxerga, “por trás” desse pensamento, na verdade, que o governo precisa fazer essas medidas que estão no alcance dele.

O viés da crítica do Paulo vai muito no sentido de dizer “É o que tem para hoje, então vamos fazer o melhor com o que a gente tem”. Existe um problema no governo Lula que ninguém é tão carismático, no sentido inclusive “mágico” da palavra, quanto Lula.

Só que não adianta você ser o “populista carismático” se você não tem todo um aparato para que a sua vontade seja feita. Lula pode fazer os discursos mais bonitos na ONU, mas não tem como aplicar nem metade do que disse aqui no Brasil.

Enquanto boa parte do governo representa muito uma política seca, chata, austera, desengajada, Lula é muito simpático, animador, mexe com os desejos da população e dos empresários sedentos por lucro. É nisso que Ghiraldelli aposta quando quer criticar o Silvio, no meio de toda sua retórica, é isso que ele quer dizer.

Ele também não percebe na sana de querer reinventar a roda, ou algo assim, que na verdade ele acaba defendendo políticas públicas que a direita faz. PPP não é nada mais que um mecanismo para gente privatizar sem precisar vender o aparato público. Você coloca uma gestão privada num serviço público. É o que acontece com transporte, por exemplo.

Enquanto Jones aposta que Silvio faça o enfrentamento e tente disputar o governo, Ghiraldelli já acredita que essa crítica é mero oportunismo de Silvio. De um lado, eu acho um erro acreditar que Silvio vai fazer um enfrentamento, justamente porque PPP é toda base da política pública do governo federal. Simples assim, e quem pauta essa política tem muito mais poder dentro do próprio governo.

Eu acho que Silvio consegue fazer um livro, uma palestra, um doutorado sobre privatização de presídio (ou abuso sexual), mas lutar no governo, mobilizar pessoas para tal, duvido muito. Parece que é nisso que Jones aposta.

Só que o grande erro para mim nessa tática é que não tem quadros, não tem uma organização de rua e inclusive uma discussão pública sobre esse debate que faça sei lá, que isso não vire algo contra o governo Lula. Justamente, porque quem pode fazer essa pressão que Jones sonha, é a burguesia com seus quadros espalhados por todo canto, inclusive dentro do governo Lula.

A nossa esquerda não pauta debate nenhum. E não raro, facilmente vira ferramenta para destruir a si mesma.

O erro já foi ter feito a política do seu adversário político. Aí você já perdeu, e se não fizer, você já se desgastou com as suas bases, é nisso que o PT se meteu. Eu não vejo muito o que aproveitar dessa situação, mesmo num contexto, como é o que Jones tenta fazer, ganhar pessoas de esquerda que não gostam do PT.

Veja, eu não sei o quanto isso é de fato efetivo ou eficaz em ganhar pessoas num projeto político. Jones está tentando captar uma tendência possível dos próximos anos, que é um sentimento de decepção por conta das insuficiências da social-democracia rebaixada do governo Lula.

Só que o problema é o seguinte : Jones pode ressoar um sentimento de decepção geral com Lula, mas Jones (digo PCB-RR de forma geral) dificilmente tem capacidade de organizar as pessoas a ponto de instrumentalizar esse sentimento para ocupar espaços de poder (que não são necessariamente cargos políticos do Estado). Acaba sendo um pouco trotskista por parte de Jones, falar as coisas e elas até serem importantes, mas ter dificuldade de coordenar e prosseguir com algo de fato concreto. E por incrível que pareça, Jones acaba ficando muito parecido com Ghiraldelli nesse sentido.

Por outro lado, Ghiraldelli parece que não consegue enxergar o canto da sereia do governo Lula de uma forma geral.

A função do governo Lula, dentro do escopo geral da nova República, sempre foi de tentar estabilizar uma economia neoliberal introduzida por FHC. Agora não é diferente, o sentido de reconstrução nacional, de uma normalidade da alternância de poder entre PSDB e PT dos anos 90/2000.

Eu vejo essa contradição de Ghiraldelli em enxergar em Lula um novo que não existe em lugar nenhum. Só a memória do que Lula fez segura todo seu carisma. Ele é bem menos radical, menos combativo, menos disposto a fazer coisas diferentes. É a nostalgia que mantém Lula popular, não o que ele é no presente.

É interessante antagonizar Jones e Ghiraldelli porque ambos são muito sintomáticos…No sentido de que eles representam muito o que é a prática da política da esquerda hoje.

Jones fica falando que Brizola nunca foi presidente porque nunca se vendeu para a Globo - o que dá a subentender que Lula se vendeu. Ghiraldelli reclama de “pautas identitárias”, da representatividade falsa, da falta de uma política do corpo na esquerda e inventa um “stalinismo” que nunca existiu no Brasil.

O que um petista médio te diz sobre o que o Lula fez com as conciliações ? É questão de estar em minoria, não ter hegemonia, de evitar conflitos, etc. A esquerda radical aponta que isso é uma pauta mínima, que é preciso fazer um enfrentamento.

Qual é a grande questão aqui que isso nos leva a concluir ? Que a esquerda não tem poder popular. Eu acho que Ghiraldelli despolitiza muito quando não aponta o caráter liberal da representatividade falsa, Jones erra ao acreditar que é possível evocar uma radicalidade sem quadros políticos, sem uma organização mais ampla das forças políticas.

Oras, se o governo Lula sofre de ter que ficar conciliando, sofre de ter que rebaixar a sua política, sofre de repetir erros do passado, é justamente porque não existe uma capacidade organizativa de estar nos lugares e ter hegemonia política.

Se o governo apela para uma representatividade falsa é justamente porque é a única forma que tem de agradar sua base, que é um pessoal com uma formação política bem liberal, que defende que propaganda em banco diminui o racismo e coisas do tipo.

O ponto é, PT sofre de não ter construído de fato poder popular e de não ter usado o aparato do Estado para ter seus quadros. O PT sofre de não ter feito o que é acusado pela direita : aparelhar o Estado para realizar o seu projeto político.

O maior problema da esquerda é não discutir dentro de uma perspectiva científica e dentro de uma ação política organizada, com capacidade de coordenar e organizar inclusive a sociedade de forma geral.

É muito claro que no andar das coisas Jones trabalha para tentar criar algum capital político capaz de desafiar a hegemonia petista. Se ele vai conseguir, não sabemos. O interessante disso é ver ele tentando captar um sentimento, que você vê pessoas aqui e ali reclamando, de promessas não cumpridas de campanha. A direita sabe bem disso e vai explorar muito isso. Enquanto o que Ghiraldelli quer nisso tudo ?

E aqui muita gente tem dificuldade de entender o que ele quer dizer e qual é o grande erro da perspectiva dele. O centro da crítica dele, quando ele fala de Silvio, é o identitarismo e por vezes o “stalinismo”.

Mas isso volta lá atrás, quando ele discute identidade no contexto do neoliberalismo. Ele discute sobre uma identidade histérica em si mesma, envolvida de códigos e semiótica, incapaz de enxergar um outro.

O problema para ele do “stalinismo” é porque cria, supostamente, uma práxis política de gado, acrítica, autoritária e que a esquerda precisa se adaptar, criar novas práticas políticas para a época em que vivemos.

Só que para criar essa prática nova, nós precisamos ter pelo menos a capacidade de estudar o que já fizemos para não ficarmos cometendo os mesmos erros. E bem, Ghiraldelli é daqueles que demoniza qualquer tipo de organização popular.

É impossível criar uma nova práxis política sem uma práxis política. Eu acho que existe um engessamento, uma falta de criatividade, mas não é porque existe um “stalinismo”, é justamente porque falta uma organização mínima para fazer as coisas.

Vou dar um exemplo que deve acontecer direto no Brasil todo : Você tem uma tarefa X e essa tarefa X, é feita e organizada por uma pessoa. E só ela faz e só ela sabe fazer. Aí um dia essa pessoa precisa fazer uma outra coisa, ou não pode fazer a tarefa de sempre, a tal da tarefa X fica comprometida porque o resto da militância não é organizada ou tem know-how para fazer essa tarefa.

Se em empresa isso acontece de ter o fulano que manja de excel e se ele faltar um dia, ninguém sabe fazer as planilhas, imagina num contexto de militância política que acontece de forma quase que artesanal e voluntarista ?

Veja, tanto no caso de Ghiraldelli, como de Jones, que pretendem criar uma nova política, existe esse erro de achar que fazer uma política amadora, sem organização, sem uma proposta e formação de quadros políticos vai ser capaz de lutar contra a política burguesa altamente organizada e bem coordenada.

É um caso de pessoas usando estilingues contra tanques.

O mesmo vale para o possível embate interno de Silvio no governo federal. O conhecimento dele é importante e tal, deve ter uma formação incrível, mas é preciso reconhecer (e é isso que a gente precisa ter atenção), que existem figuras dentro do próprio governo que são umas raposa velha com um saber político e com uma capacidade de coordenação muito maior do que a de Silvio.

A grande questão do jogo é a antecipação. O seu oponente sabe bem quem você é e como vai reagir. Sabe para onde você corre quando está assustado. Com isso ele pode manipular seus passos, ele pode jogar para fazer você fazer coisas que ele gostaria de fazer e sem precisar se desgastar por isso.

É fácil a hegemonia burguesa ganhar de volta o discurso público, até porque o que não falta é “a oposição” soltando discurso da burguesia. De um lado, todo esse debate sobre “identitarismo” é um espantalho para quem não quer dar o braço a torcer para tentar entender gênero, raça, etc.

Se na esquerda tem dissonância com isso, é muito claro que a direita vai usar desse discurso para mobilizar as pessoas. Para te dar uma noção : na comunidade trans não existe um consenso mínimo sobre o que é ser trans. Quem é mulher sabe bem sobre a sororidade. E nem te falo sobre o debate horrível de colorismo.

A esquerda não é tão esquerda assim e nem tão radical, por isso é tão fácil para ela transitar entre a direita e a esquerda tão rápido (Almeida não me deixa mentir). A questão não é conseguir fazer uma mudança tão radical, é mais sobre o fato de que a gente é reacionário de uma maneira geral.

O meu problema com esses três, é uma certa falta de noção mesmo, no auge dos doutorado, da produção acadêmica, da idade e da sabedoria política, de que você não vai para lugar nenhum, se você não tem o poder político e nesse caso, eu falo de poder popular.

Adianta propor várias coisas e não conseguir prover nenhuma ? Lula tem esse problema, mas no auge de todas as suas conciliações, de seus erros, alguma coisa ele conseguiu entregar e por isso o petismo não é superado.

Não é porque existe um “peturro” ou algo assim, ou porque “stalinismo”, ou meramente “revisionismo”, é aquela coisa, o Brasil não virou o paraíso do dia para noite, mas o preço da comida diminuiu um pouco não ?

É nesse pouquinho em pouquinho, que faz muitas vezes as pessoas deixarem para lá a discussão política. O governo Bolsonaro conseguiu ficar ruim a ponto de obrigar todo brasileiro a se politizar, porque aquilo afetava a vida de todo mundo.

A normalidade petista cria uma paz política que facilita você passar meses ignorando o debate político e poder fazer as coisas da sua vida.

E isso facilita muito normalizar precarização do trabalho, falta de aposentadoria, privatização dos serviços públicos, etc. Esse é o nosso eterno sono esplêndido. Eu acho, e é uma coisa que eu digo muito, muitas vezes o que faz uma pessoa se importar com política, mesmo com religião, é a capacidade de criar uma imaginação, de mexer com os desejos das pessoas, com seus afetos.

Ok, o mundo é guiado por signos, imagens, pela simulação, por relações parassociais, por tesão, por vontades, etc, por que a gente tem tanta dificuldade de explorar exatamente isso ?

Ghost