ᴬ ʰⁱˢᵗóʳⁱᵃ ᵈᵉ ᴬˡⁱᶜᵉ ⁻ ᵒᵘ ˢᵒᵇʳᵉ ᵃ ᶠᵘⁿçãᵒ ᵈᵃ ᵃᵖᵒˡᵒᵍⁱᵃ à ᵖʳᵒˢᵗⁱᵗᵘⁱçãᵒ

O que eu vou escrever aqui é canon para uma história que eu estou escrevendo e serve para ilustrar um ponto. Não tem necessariamente um spoiler, mas pode mudar também.

Tem essa garota chamada Alice. É claro, esse não é o nome real dela, ela é uma prostituta trans. Sim, é uma história meio pesada em várias camadas, tanto que esse post nem vai ser tão compartilhado.

Ela tem uma péssima reputação, ela mente, ela rouba, ela engana. Como é uma menininha loira bonitinha, muitos homens competem para pegar ela logo, ela já fez dois caras brigarem no meio da rua para ficar com ela e no final, ela nem fez sexo com o vencedor.

Além de, claro, viver à noite, ela faz muitos filmes porno, vende packs de fotos num site aí. Nisso ela ganha muito dinheiro, tem peitão por isso, silicone veio dessas coisas.

E aí comparada com outras meninas, ela é meio que uma exceção. Isso faz ela se achar demais. Quando a gente encontra uma pessoa dessas, a pergunta que você deve fazer é exatamente essa : Quais foram as condições históricas que permitiram essa pessoa “chegar lá” ?

Quando você vai ver a história de Alice, ela não vem de uma família rica, veio de uma família de classe média, quem narra a história (Érica), não sabe muito dos pais de Alice, mas sabe que ela fazia sexo por dinheiro com uns moleque de classe média do colégio dela. Ouviu falar claro.

O que fez ela chegar numa clientela que paga bem e sempre, a polícia e os traficantes. Desde cedo, ela sempre usou maconha, ecstasy em específico, por conta das baladas que ela ia. Diferente da grande maioria das meninas trans que são obrigadas a se prostituir por falta de renda, ela meio que ia atrás disso por prazer, por sei lá, achar legal ?

Essa é a parte da história que aparece, que você escuta nas fofocas, etc. E tem a parte do que eu vou cunhar como “jogo”.

Eu quero que você pense num jogo literal. Com pontos, recordes, estratégias, pontos, truques, trapaças, etc. Essa história que você ouviu sobre Alice não tem uma forma confiável de descobrir a verdade.

Isso é porque ninguém sabe se o que Alice fala é verdade, ninguém tem alguma ferramenta para descobrir quem é Alice de verdade, muito do que se sabe dela, vem de reputação de terceiros, é uma fantasia coletiva sobre a vida de uma pessoa.

Não só existe uma dificuldade muito grande de ir atrás da verdade, talvez a pergunta mais importante, será que é tão relevante assim saber a verdade sobre Alice ? Mesmo que de alguma forma, nós sejamos capazes de descobrir a verdade, será que a gente está compreendendo o discurso e a função dessa fantasia na sociedade ?

Uma pessoa como Alice, especificamente, para uma pessoa trans, que não raro ou quase sempre, está desempregada, vive em constante situação de rejeição social, a família não gosta, os amigos antigos se afastam, tem uma dificuldade muito grande de conseguir um emprego (mesmo com qualificação profissional), serve para glamourificar uma situação precária : a prostituição.

Ela é o tipo de pessoa que posta stories de balada, que vive saindo para uns hotéis caros, que sempre vive trocando de celular, viajando, que tem um corpo lindo maravilhoso que todo mundo quer e fantasia possuir.

Essa parte brilhante da prostituição serve, na mesma medida, que o sonho americano, só que para pessoas trans, legitimar e criar um horizonte. É o que faz muita gente aceitar abuso, violência, pouco ou quase nenhum pagamento, etc, em nome de algum dia “chegar lá”.

Existe um interesse para que essa história, por mais fabricada que seja, se torne real. Tudo o que Alice diz pode ser mentira, a história dos homens brigando, os traficantes, os policiais, os homens de negócios, o silicone, o corpo lindo, as festas, o cabelo loiro belíssimo, os celulares novos, tudo precisa ser verdade, por um lado, para criar um horizonte, por outro, para esconder uma realidade mais pesada, para justificar o nosso sofrimento coletivo e por fim, e mais importante, também é importante para Alice - isso a torna famosa.

É muito claro isso. A comunidade trans mesmo, não é nenhum pouco unida, a esquerda não sabe nem o que fazer com a gente, a direita nos mata, é cheio de gente liberal para todo canto falando merda e uma ferramenta de resistência, fora religião, fora o abuso de drogas, é adotar um tipo de individualidade radical. É você se auto afirmar como puta, como vagabunda, como travesti, como gostosa, como uma figura desejável.

Ou seja, por mais mentira que a história de Alice seja, toda travesti quer ser uma Alice, essa história fantástica ser verdadeira é uma forma de dizer que podemos fazer sucesso. Podemos ser mulheres de sucesso, não à toa, há esse espelhamento em divas pop.

Isso é visto por muita gente como a única saída para uma vida melhor. Não é militância, não é estudando, não é tentando construir uma carreira, é você se prostituir. Esse é o único horizonte que uma pessoa trans possui na sociedade que a gente vive.

De um lado, nós temos toda a transfobia, todos os piores estereótipos possíveis e do outro, glamourização do trabalho sexual. São moedas do mesmo lado, que servem para manter a gente nessa realidade.

Por isso a história de Alice, no esquema do jogo, é o recorde a ser batido, é o conjunto de valores a ser seguido, é um meta, isto é, a estratégia mais viável possível.

Uma estratégia de jogo, para ser viável, em primeiro lugar, precisa ser consistente. Pensa o seguinte, dado básico na sua cara : conseguir uma vaga de emprego para qualquer pessoa é difícil, se você começa a falar de pessoas trans, de gente preta, imigrante, indígena, etc - Aí os RH jogam você na lixeira primeiro, mesmo que existam leis contra-discriminação.

Vamos supor que você é trans e aí você passou dessa fase, aí você vai ter que lidar com RH, entrevistadores, etc, que não sabem lidar com pessoas trans. E olha que eu não falei do emprego em si, da relação com colegas, etc.

Veja, tudo isso que eu descrevi, podem ter sido meses, até mesmo anos de vida, não é todo mundo que pode ou que tem essa sorte. Se você for falar de trabalho autônomo é até pior, que tal lidar com uma sociedade transfóbica ? Parece legal né ?

O único lugar que as pessoas esperam uma pessoa trans é na prostituição, no crime, na cadeia ou em alguma cova com o nome morto escrito. (A título de demonstração, eu de legging, camisa de metal, sem maquiagem, já fui abordada na rua, por um maluco achando que eu era puta - quantas ofertas de emprego formal eu já recebi ? Zero…. E não, eu não aceitei a proposta do maluco)

(Isso porque eu nem falei do suicídio, as questões da nossa saúde mental)

Nessa história toda, a verdade definitiva da história de Alice é a coisa mais irrelevante que poderíamos discutir. Mas, o interesse, a função do discurso, a necessidade das pessoas assumirem esse discurso e de reproduzir ele.

Essa personagem eu criei. Mas não é difícil ver alguém assumindo essa persona, adotando essa personagem e nesse caso, você não ter uma Alice, mas várias pessoas que imitam Alice.

Eu tô escrevendo isso, porque eu tô numa posição muito única. Tô na universidade, eu sei escrever, falo inglês, sou branquinha, até o momento tenho onde morar e recebo uma ajuda da família. Sem isso, eu teria que estar numa esquina qualquer, fato. Foda-se a minha graduação, foda-se os textos que eu escrevo, a única coisa que a sociedade quer de mim é o meu **.

E eu sei que existem outras pessoas nessa posição meio que num limbo. Você não está vivendo tão mal, mas também não tem nada e não tem nenhuma perspectiva para fazer nada no futuro.

Aí eu resolvi fazer esse texto, tentando resolver isso. A gente não precisa de Alice, eu acho que não precisamos também da suposta militante que na verdade é bem liberal também. Como não precisamos de mim, a “acadêmica” ou da menina trans gamer que vive em casa.

Muito menos precisamos de gente conservadora, muito menos ainda quem defende o empreendedorismo.

Eu literalmente numa busca eu achei uma menina numa comunidade que faz desenho, posta onlyfans, programa (de pc) e se brincar, música, foto, etc, etc. Então, não, isso não funciona também.

O que a gente precisa é fazer uma coisa diferente. Que tal apostar nas pessoas ? A chance de você morrer é a mesma, isso eu garanto. Mas e se a gente, por exemplo, construir comunidades, firmar mais laços com as pessoas, e se a gente militar, mas de outra forma, e se a gente fazer arte, mas não sempre do mesmo jeito ?

E a lista segue.

É triste ver as pessoas tentando sempre a mesma coisa, sem ter capacidade alguma de tentar outras coisas. E gente, nós literalmente não temos nada a perder. Para essa sociedade, nem as correntes, a gente tá abaixo disso….
Ghost