…Viva os caçadores de vampiros.


Talvez em nenhuma outra época da humanidade, nós tenhamos tido um acesso tão vasto e rico do passado.

De certa maneira, o nosso problema não é tanto a falta de fontes, mas como montar a narrativa. Pode até ser uma coisa que possa ser resolvida com o ensino de teoria da história, problema é aplicar esse tipo de ensino, com que poder, do Estado ou uma organização popular dinâmica e descentralizada ? Isso não é discussão que se encerra fácil, muito pelo contrário, nós precisamos observar o contexto histórico que nos inserimos.

Hoje é um desses dias que eu acordei meio anarquista. Eu acho que a forma mais inteligente de se pensar a sua posição política é de forma conjuntural.

Tem um elemento muito claro que é a situação de urgência que nos encontramos e a dificuldade de se criar laços de cooperação.

E assim, é uma coisa que eu não sei se disse explicitamente, mas muita coisa no Brasil estaria numa possibilidade melhor se a gente fosse, no mínimo, o espantalho do leninismo.

Digo espantalho, porque a situação é tão grave a ponto da gente dificilmente achar o tal do bolchevique da disciplina de ferro das propagandas anticomunistas.

Aquilo que os anos 60 se insurgiram nunca de fato existiu no ocidente, por uma razão muito simples : os aparelhos de repressão são bem organizados e estão muito bem estruturados para evitar que algo como os bolcheviques, os maoistas, etc, surjam por esses lados.

Maior prova disso é a operação COINTELPRO, que foi a maior operação de contra-espionagem dos Estados Unidos da América que visava combater forças “contra a segurança nacional”. Como os comunistas, por exemplo. 

Aqui no sul global tivemos golpes de Estado, justamente com esse propósito muito claro de evitar que uma força revolucionária crescesse, ainda que a gente saiba que a gente estava bem longe disso por aqui.

O resultado disso é uma esquerda bem liberal, que usa às vezes jargões marxistas (ou de forma difusa progressista) e tem uma aversão à organização popular, aquém inclusive da tradição liberal da qual verdadeiramente pertencem. Ainda que exista um número bem reduzido da esquerda radical, entre comunistas e anarquistas, nenhum deles chega perto do tamanho do que é o “campo democrático”.

O que nos falta é uma organização popular, seja de caráter anarquista ou marxista-leninista, ou sei lá, a questão é que nada parece oferecer uma alternativa ao incessante e agoniante estado de apatia generalizada. Fisher é muito feliz quando diz que a esquerda está num estado de depressão clínica coletiva.

Longe de querer entrar no marxismo-freudiano-lacaniano de tipos como o Safatle, que não entendem o limite da “psicanálise social”, mas é muito claro o quanto a ideia do vampiro, do monstro do pântano, das bruxas, dos fantasmas, etc, mesmo num “mundo da ciência”, refletem num sentimento generalizado de ansiedade, de medo das mudanças e se você quiser avançar, podemos até falar em uma esquizofrenia generalizada.

O espectro do comunismo, em essência, não é uma invenção de Marx, é mais uma descrição de uma tendência histórica, um “espírito do tempo”, conversando com o finado Hegel.

Veja, Marx escreve o seu manifesto, a Europa passava pela primavera dos povos, a insatisfação popular era generalizada, era só uma questão de tempo - analisando os elementos da realidade, que alguma hora isso estouraria numa revolta mais generalizada que representasse uma revolução popular.

O socialismo popularizado no século XIX é muito diferente do que se tornou comum no século XX. Quando a gente fala em socialismo no século XIX, nós estamos falando de Proudhon, de Fourier, Saint Simon, o socialismo científico, que se tornou o marxismo, foi ganhando mais espaço na segunda metade do século XIX, início do XX.

A grande questão que eu quero apontar é que nem precisa o comunismo existir, a conclusão de que ele é uma ameaça ao status quo é só uma constatação dos fatos. Basta olhar para a luta de classes antagônicas, basta observar as condições de vida de um e de outro, basta olhar para como a riqueza é distribuída, não é, e isso é muito importante, uma teleologia baseada numa ideia abstrata - É uma análise que surge da análise da materialidade, uma tendência histórica.

Tanto é, que você pode olhar para isso e querer evitar um confronto, tentar negociar, como os reformistas, a própria burguesia e uma parte da classe trabalhadora já o fizeram. Outra resposta é criar um Estado socialista (ou algum tipo de comunidade anarquista) a partir de uma revolução popular. A primeira coisa aconteceu no “ocidente”, a segunda no “terceiro mundo”.

O Brasil não foi um dos países que se tornou comunista no século XX, foi um dos lugares que o imperialismo tratou de sabotar e cooptar antes que isso fosse possível.

Ainda sim, e a gente ainda tem um histórico de partidos de esquerda virando para direita para fazer esse argumento melhor, o comunismo nunca deixou de ser um medo das elites brasileiras, dos aparelhos do Estado, das universidades, dos institutos de pesquisa, da polícia, da igreja, etc.

O curso de Ciências sociais, por exemplo, é todo voltado para trabalhar engenharias sociais para evitar tantas revoltas e guerras, para aprender essencialmente o jogo político, a luta incessante entre as duas classes. O sociólogo está no meio disso, assim como o historiador, o físico, o engenheiro, etc.

Existe essa preocupação de criar todo esse aparato social, do treinamento da polícia, passando pela formação do crime organizado, pelas aulas da creche, pela programação da TV e da internet, etc, é para evitar que as pessoas se organizem e vão tomar o Estado.

Tudo isso me veio ao ver Buffy, a caçadora de vampiros. Veja, o vampiro é essa figura que é imortal por sugar o sangue dos vivos - uma analogia direta à burguesia.

O que é interessante desses dois episódios iniciais de Buffy é que ela havia mudado de escola por conta dos eventos do filme, eu acho (não vi o filme) e ela só queria viver a vida normal de uma jovem de 16 anos.

Ela não queria ter que caçar vampiros, bruxas, zumbis, lobisomens, etc, o que ela queria mesmo é estudar na escola, fazer amigos, ir à festas (inclusive puta música boa dessa série), quem sabe fazer parte do time de animadora de torcida ?

O que eu achei interessante da série é como ela apresenta a ameaça do vampiro. (spoiler para uma série de mais de 20 anos atrás, mas eu só vi até o episódio 4, 5)

Ele não é explícito. Ele aparece primeiro através dos sonhos. Buffy ignora os pesadelos de vampiros, crucifixos e destruição do mundo.

Isso fica ainda mais interessante quando os sinais começam a parecer no mundo real. Há jornais de jovens desaparecidos misteriosamente e mais tarde se acha um dos corpos dentro do armário de uma das estudantes com marcas de mordidas no pescoço.

Buffy por um momento apenas suspeita que na escola tenham vampiros e veja, a reação dela não é de medo, mas sim de cansaço.

A impressão que eu tive (lembrando que eu não vi o filme) foi que essa história de ser caçadora de vampiros é uma coisa que atrapalha a vida dela.

Impede dela fazer as coisas que ela queria fazer. Voltando para a psicanálise, é um caso de castração, um gozo interrompido - O bom de ser jovem, em tese, é a própria juventude, mas mais importante a vitalidade.

Mesmo que Buffy não fosse uma caçadora de vampiros, a presença deles já cria uma certa aura social de que algo, alguém, está nas sombras planejando formas de sugar a sua vida.

Uma das formas que a gente pode ler Buffy, é como analogia para o trabalho do jovem na adolescência. Veja, ela quer só viver, fazer o que quer fazer, satisfazer seus desejos.

A questão é que ela não pode - ela tem uma tarefa. Por conta da forma que a história é estruturada, é muito claro aquela coisa do escolhido, e bem, é uma série adolescente, isso é esperado.

Eu não sei se Buffy já conhecia o bibliotecário da escola, mas quando ela vai consultar ele, porque ele é um especialista nessas criaturas (para mim, é leia-se um marxista), um rapaz acaba ouvindo a conversa deles e descobre que Buffy é uma caçadora de vampiros.

Mais tarde, isso leva ele e mais uma menina hacker nerd (hoje chamariam ela de femcel ou algo assim), que se tornou uma amiga dela a se ajudarem para tentar derrotar os vampiros que apareceram no cemitério.

Para mim isso é um flerte muito grande e uma certa quebra da ideia de escolhido, com noções mais coletivas de organização.

E assim, existe essa ideia de que conhecimentos “místicos” são meramente pseudo-ciência. A questão é que nesse mundo que ela está, as coisas de fato existem e para derrotá-las, ela precisava ter um conhecimento vasto.

Aí entra a figura do bibliotecário estudioso, da menina nerd hacker que sabe muita coisa sobre tudo e é interessante que o rapaz lá, ele não tem uma especialidade, mas ele sempre está lá para ajudar da forma que pode.

É essa combinação de forças que ajuda Buffy (que tem super poderes e tal) que dá as ferramentas para ela conseguir destruir o vampirão que queria o poder infinito dos jovens para destruir o mundo.

Da mesma forma que a possível presença de vampiros cria essa tensão na escola, a presença de Buffy causa medo entre os vampiros.

É muito nesse ponto que eu quero chegar : Numa situação tão rendida e emergencial, assim como no mundo de Buffy, os vampiros querem abrir o portal do inferno e destruir o planeta, será que a gente não precisa de uma caçadora de vampiros ?

Só o fato de existir um pequeno grupo organizado já faz o grupo de vampiros em maior número, mais poderosos, com mais recursos, tremerem de medo.

Afinal, se existe esse grupo pequeno, será que não existem outros mais bem organizados e preparados, sabendo de todas as suas fraquezas e forças, capazes de eliminar de vez os vampiros ?

  

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