É necessário falar grego com as massas ?

Se tem uma coisa que boa parte das pessoas pede para a esquerda fazer é voltar a fazer trabalho de base, participar mais da sociedade, trabalhar mais com associações, reatar os laços sociais destruídos pelo capital. E no meio dessa crítica sempre tem a questão de “falar a língua das massas”, ou seja, largar os jargões acadêmicos de lado e falar do jeito comum que as pessoas conversam.

Para mim essa segunda parte perde de vista uma coisa importante : o conhecimento desde sempre teve uma natureza de ser exclusivo, limitado, codificado, encriptado, para ser consumido por alguns monges no monastério. Esse nosso foco individualista em autores como grandes profetas, como pessoas que enxergam coisas que ninguém mais vê, é um elemento que mostra que o saber não é algo público, a ser conhecido pelo máximo número de pessoas e pensado como uma construção coletiva.

Não existe gênio iluminado, para existir Newton, Einstein, Darwin, etc, etc, em volta sempre existiu uma academia, um conjunto de outros pares que compartilham o conhecimento entre si, que construíam esse saber juntos e o mais importante, em todas as vezes o investimento público foi necessário para que esses cientistas fizessem seus estudos.


Então antes de “falar para as massas”, é preciso ter em mente que nós precisamos criar uma pedagogia popular que não transforme a escola num local fechado, recluso, distante, cheio de códigos que ninguém mais entende e supostamente não pode compreender. O conhecimento deveria ser uma coisa de cada praça, cada rua, cada discussão de bar, cada espaço deveria ser um espaço para a construção do nosso saber popular.


A forma que o conhecimento é construído, através do que vou chamar de encriptação, ou seja, você cria uma linguagem que só algumas pessoas dominam e que mesmo que outros tenham acesso, é como pegar uma mensagem codificada sem saber o código - não faz o menor sentido. Veja, existe acesso ao conhecimento na internet - mas você entende o que diz ?


É como receber um código morse sem saber código morse, são apenas sinais sem sentido algum, mesmo que a mensagem seja bem escrita e pensando na “linguagem vulgar”. Em parte, existe um motivo político muito claro de colocar o conhecimento atrás desses códigos : você domina o saber, enquanto o outro não consegue; Isso cria uma disparidade terrível entre aquele que sabe e o que não sabe - mesmo que a decisão do que sabe seja melhor informada e possa ser melhor para o “ignorante”, é quem tem o conhecimento que acaba tendo poder de decisão na sociedade.


Se a gente defende uma democracia, é impossível falar dela sem a difusão do conhecimento. O que é preciso fazer : ensinar o código para todos. É impossível ensinar matemática, por exemplo, se você não ensinar o conceito de número. A questão do ensinar não é abandonar completamente o conhecimento chamado de “erudito” para ensinar apenas tudo no jeito “vulgar” - é justamente criar pontes para que nós possamos não ter nem o “erudito” e nem o “vulgar”, mas um conhecimento popular que flua entre todas as pessoas.


Se você chegar na sua tia e explicar bem, sem ficar enrolando, conversando, sem tratar ela como inferior, sem ignorar o que ela sabe - você ensina facilmente conceitos como biopolítica de Foucault para ela. A sua tia pode já ter passado num hospital, dependendo da situação da família, já teve gente próximo no sistema prisional, sabe do que a disciplina escolar e a que existe dentro da própria casa dela.


A questão não é você ensinar isso para ela sem que você também aprenda alguma coisa a mais sobre o tema, entre outras palavras, que ela também tenha para contribuir dentro da teoria biopolítica de Foucault - sua tia consegue fazer isso, se você não acredita que seja possível ensinar isso para todo mundo e que todo mundo possa construir esse conhecimento, do que adianta conhecimento ?


Existe uma questão de manter o poder político na mão de poucos e de forma que seja fácil dominar, por isso o conhecimento é tão isolado e é criado tantas barreiras em torno dele para que as pessoas não o acessem. Uma sociedade, importante frisar isso, SOCIEDADE, que produz e difunde conhecimento entre si, consegue avançar muito mais no desenvolvimento da sua capacidade de modificar a realidade.


A questão não é ter mais escolas fechadas, mas sim escolas abertas para todos em todas as partes, em cada lugar do país. Ao invés de igrejas, e sim, eu sou dessas, deveríamos colocar escolas em cada esquina, cada lugar deveria distribuir conhecimento, livros por toda parte, clubes e mais clubes de leitura. Mesmo cada igreja, não vai ser mais necessário ter pastor, nós vamos todos sentar e discutir criticamente cada religião, vai ter teologia e exegese (interpretação de texto) em cada lugar.


Esse é o sonho que a internet nunca conseguiu entregar. O conhecimento é um fluxo e esse fluxo é cuidadosamente construído para passar em apenas alguns lugares, é um rio construído para irrigar apenas alguns lugares, enquanto seca outros. Se a gente quer ter abundância para todos, o rio precisa passar por cada pedacinho de terra.


Por isso eu acho assim, não é uma questão de “falar com a linguagem da quebrada”, mas falar de uma forma que exista de fato uma conversa. De forma que eu entenda você e você me entenda, sem haver a necessidade da gente ficar criando mais barreiras de conhecimento cheias de códigos específicos. Não é sobre eu te ensinar, ou você me ensinar, é sobre nós ensinarmos/aprendermos juntos e construir conhecimento junto para que todos tenham acesso a esse saber.


Por hoje é isso.


PS : Faculdade, eu ando meio borocochó e é isso, vou voltar pro meu LOL.