ᴬᵖᵒˡᵒᵍⁱᵃ ᵃᵒˢ íᵈᵒˡᵒˢ

Isso é uma coisa que eu venho notando há um certo tempo. Como que todo conteúdo é quase sempre um conteúdo sobre outro conteúdo. Se não de outros criadores, mas de jornais da mídia burguesa.

Eu não tenho essa conversa mole de autor. Todos criamos os textos coletivamente, os autores são as pessoas que compilam, tentam analisar, entender os textos. Existe sempre uma função pedagógica na prática da escrita e do debate público. Mas assim, quem pauta sempre o nosso debate ainda é o tal do gênio.

É muito essa ideia religiosa do profeta : o único portador da verdade ! E a gente tem uma penca de profeta e de gente que se diz profeta para ganhar atenção. É difícil escapar disso, é um desenvolvimento cultural da vida na sociedade liberal. O mito fundador é a ideia do indivíduo independente autônomo. Tem uma outra tese que diz que é tudo uma questão da subjetividade maquínica nascida do capitalismo cognitivo que limita nossa capacidade linguística, é isso que Franco Berardi defende. Como se a nossa incapacidade de expressar certas coisas mudasse nossa capacidade de imaginar um mundo diferente - é o que Fisher sintetiza como realismo capitalista.

Podemos ir por esse lado, mas também podemos dizer que isso tem causas mais antigas. A ideia do herói, do profeta, do sábio, etc, não são arquétipos da sociedade neoliberal, mas da sociedade antiga e mais, é preciso compreender que nós ainda bebemos muito dessa tradição até os dias de hoje.

Existem críticas, meio tortas à ideia de personalismo ou a ideia de ídolo. E tem problemas, você sabe que tem, todo mundo sabe, mas ainda sim todos nós continuamos a nos guiar dessa forma. Não é um tipo de fenômeno cultural que simplesmente desaparece com uma crítica. Eu prefiro tentar sustentar uma tese de que o que faz as pessoas criarem ídolos, é mais uma questão de desigualdade em relação à capacidade delas realizarem determinadas tarefas, de exercerem sua força política.

A arte é muito interessante nesse ponto. Ela tem esse lado técnico, de você executar uma determinada tarefa, um estilo de pintar, um jeito de tocar um instrumento, um determinado tipo de treino, etc. Eu acho mais fácil você apreciar algo desse tipo : 



É uma música belíssima, eu acho difícil qualquer pessoa não reconhecer o tremendo trabalho, treino, esforço e técnica que demanda tocar uma música dessa, mesmo que nem goste de jazz ou se interesse ou saiba alguma coisa de teoria musical. A parte estética importa, mas aqui a técnica também tem um papel de legitimação, de colocar o artista numa espécie de pedestal.

Agora uma música como essa :


Note a simplicidade da melodia, da letra, tudo nela parece amador, feito sem esforço, sem técnica. Apesar disso tudo, ela ainda tem uma técnica, tem uma certa poesia, uma intensidade e um tipo de performance completamente diferente. É possível apreciar as duas músicas, se divertir, dançar. A grande questão aqui é qual delas tem mais apelo de ser legitimada como música ?

Com certeza Alice Coltrane tem mais respeito que uma banda de grunge dos anos 90 obscura. É isso que a gente precisa de uma vez entender - Alice Coltrane é idolatrada porque tem poder sobre nós, ela tem uma coisa que a gente não tem, um “talento” para música.

A gente sabe que é treino, dedicação, sorte, alguma condição social, e o talento teve um papel muito pequeno no meio de tudo isso. É muito como a nossa relação familiar, os pais têm poder sobre os filhos não necessariamente por uma questão afetiva, é também um poder vindo do conhecimento sobre a vida, a ideia de que no pai tem uma versão amadurecida sua e que no futuro você vai ser como eles.

Os pais podem até tentar mostrar para os filhos que eles estão tão perdidos quanto eles na vida. É engraçado que a gente fala bastante sobre a incerteza na juventude, e quando se envelhece, o que você faz ? Quando os filhos saem de casa, os amigos morrem, você ainda se aposenta do velho emprego (isso o idoso de hoje), o que você faz da vida ? Vai tentar aprender uma coisa que nunca pode fazer na juventude ? Inventa algum hobbie ?

Os nossos velhos são como os jovens, mas o velho ainda é visto como uma figura de certa autoridade na sociedade. Posso até soar muito arrogante no que eu vou dizer, mas a idade na academia, por exemplo, não significa necessariamente que você sabe mais do que o jovem formando que acabou de apresentar uma tese. Tem várias complexidades que levam a isso acontecer, reputação é um fator, por exemplo, mas é mais fácil uma tese de um velho doutor vingar por conta de sua autoridade e não necessariamente por sua precisão, por sua capacidade argumentativa, por conseguir trabalhar bem teoricamente a tese, etc - ou seja, por puro argumento de autoridade.

O problema não é o fato de nós termos referências sociais, o problema é a desigualdade de poder (e isso no exemplo do mundo acadêmico é gritante). Fulano falar isso ou aquilo, seria um problema muito menor se todo mundo fosse capaz de pautar o debate - e não é o nosso caso. E isso não vai mudar tão cedo, muito menos vai mudar matando os ídolos (funciona se a sífilis já tiver tomado o controle do corpo).

(Fora o debate sobre habilidades que Protágoras faz, por exemplo, que acaba entrando em outra seara ainda mais complexa e que dificulta ainda mais que a gente saia disso)

A internet oferece uma certa oportunidade das pessoas também serem ídolos e criarem seus seguidores. É uma democracia dos profetas e assim, eu te falando disso não escapo também de querer fazer isso. Eu estou criando a minha religião enquanto eu falo aqui, eu tenho uma certa autoridade em relação à você, eu cito autores, eu trago várias referências, etc, devo parecer que sei o que falo.

É engraçado porque querendo ou não, por exemplo, uma grande motivação inicial que eu tive para começar a publicar textos é que existiam pessoas como Olavo de Carvalho. Digo literalmente, tipo o Olavo, que escreviam muito pior do que eu, que não tem capacidade nenhuma de escrever de forma clara e que ainda por cima, defendem umas coisas de extrema direita.

Qual a saída que eu tive ? Escrever também e não tem como fugir disso. É você meter a cara e tentar fazer, ou ter o seu ídolo que bata em tipos Olavo que te incomodam. Ultimamente, a realidade da nossa internet vem sendo exclusivamente de pessoas sendo pautadas e dando opiniões sobre determinados debates. Pouquíssimas pessoas tentam pautar, trazer algo para ser conversado, geralmente se conversa algo que todo mundo fala porque alguém grande fala, ou que se fala o que a grande mídia comentou.

Isso incomoda, porque seria importante sair do debate liberal para discutir as nossas coisas. É no mínimo triste ver que a gente na esquerda às vezes perca mais tempo tentando refutar ideias burras da direita, do que construindo um debate nosso. Não me entenda mal, é importante  responder e refutar essas merdas, mas só refutar é sei lá, brincar de filosofia. É importante também trazer um projeto político.

Eu não tô cobrando de gente que não tem voz nem dentro de casa. É gente famosinha que, sei lá, com medo de criar uma seita, evita propor coisas. Quando você cresce na internet, você passa a ser uma plataforma a ser respondida. As pessoas vão começar a ter você como referência, queira ou não.

O liberalismo pode ser péssimo e a gente é capaz de trazer uma alternativa ?