ᴿᵉᵃˡⁱˢᵐᵒ ᶜᵃᵖⁱᵗᵃˡⁱˢᵐᵒ ᵉ ᵃ ⁱᵐᵃᵍⁱⁿᵃçãᵒ

Meu blog tem de certa forma uma tarefa ousada, talvez nunca tentada, é tentar compreender melhor os mecanismos ideológicos, as dinâmicas entre criador/espectador, tudo isso para de certa forma, produzir um conhecimento utilizável. Já é cansativo demais ficar vendo as pessoas tentando fazer as coisas na internet e sempre falhando miseravelmente.

Falha em que sentido ? Oras, você tem exemplo atrás de exemplo, de influenciador de direita que enriquece, vira deputado, consegue cargo público ou consegue influenciar nas eleições. Muita gente tem a impressão que a melhor forma de que a esquerda chegue nesse mesmo patamar, seja crescendo muito - mas gente, o que não falta (no mundo todo, inclusive) são canais grandes de esquerda, figuras famosas, que escrevem rios de livros, etc.

Eu acho um fracasso catastrófico todo esse tempo, inclusive com capacidade suficiente para criar um saber fazer, nós ainda não temos capacidade de organizar a nossa comunicação, ou organizar a nossa capacidade de mobilização.

A pergunta que eu quero fazer é a seguinte : por que e como isso acontece ? Como que um grupo de whatsapp, um instagram, um canal no youtube, sei lá, uma plataforma de documentários, consegue de fato, mobilizar as pessoas e fazer elas atuarem politicamente ? Qual é a grande diferença aqui do criador de esquerda do da direita ?

O que define o que é senso comum ? Se estamos falando de um conhecimento generalizado, coisas que todo mundo sabe, de alguma forma esse conhecimento precisa ser espalhado. Seja via oral, seja através da escola, seja através, nesse caso, do que vamos chamar de grande mídia. A educação no capitalismo só tem uma função : criar uma mão de obra barata, bem qualificada e ao mesmo tempo formar um grande exército de reserva; mas um papel essencial da escola e do trabalho é educar a população para reproduzir a ideologia dominante.

Esse é um ponto importante, porque aqui você forma o que seria o público dessa mídia monopolista e dessa internet liberal. Quando você pensa a linguagem, o senso comum seria um tipo de repertório de ideias gerais. Se nós vamos discutir um problema, por exemplo, desemprego, nem passa pela cabeça das pessoas defenderem os direitos trabalhistas, formarem cooperativas, ou coisas do gênero - o nosso repertório nos diz para vendermos bolo de pote, vender nudes, entrar numa plataforma de apps, investir na bolsa de valores, etc.

Antes mesmo do jornal publicar suas matérias, já existe um público para ele. Ninguém veria jornal, por mais que hoje todo mundo esteja saturado com as burrices das coberturas, se não sentisse que lá tem algo importante. Vou citar dois exemplos, um da mídia tradicional e outro mais pop da internet : o jornal Valor Econômico e o chamado Primo Rico, Thiago Nigro.

O jornal Valor Econômico publica matérias sobre o mercado financeiro, sobre empresas, etc. Se a gente for analisar a população brasileira, por mais que exista a questão de que conhecimento é importante e que as pessoas podem se interessar por se interessarem nesse tema, são temas que pouco são interessantes para uma maioria gigantesca da população pelo simples fato de que a maioria dessas pessoas não são formadas em economia (ou no curso superior de uma forma geral) e segundo que não existe uma quantidade tão grande de empresários no Brasil.

Se os leitores do Valor fossem exclusivamente os burgueses que de fato se interessam naqueles temas, seria completamente inviável manter uma publicação dessa, já que estamos falando de uma quantidade pequena de pessoas. Mas vejam só, nós aprendemos no trabalho e na escola que precisamos ser empreendedores. Temos que pensar e agir como CEOs em construção, existe quase que uma vergonha de se identificar como trabalhador, é uma categoria que fica para os “fracos”, os que ficam na mesma carreira, que querem ser funcionários públicos. É como o grande pesquisador e crítico cultural Wagner Domingues Costa já dizia em sua prosa : “Ela quer roupa da Armani, bolsa da Louis Vuitton. Ela dá pra nois que nois é patrão”.

De repente, o Valor econômico ganha bem mais leitores do que deveria. É importante notar que ele também é uma caixa de ressonância dessa ideologia, o que gera um reforço positivo para aquele cara que é vendedor de bolo de pote e para o CEO de uma grande empresa acharem que são a mesma pessoa em momentos históricos diferentes. O cara do bolo de pote está no caminho para ser mais um CEO, enquanto o CEO já foi o homem simples que vendia coisas na rua - isso aqui é puramente ideologia. (Silvio Santos falando que foi camelô, por exemplo)

Nós sabemos bem que quem hoje é burguês, em especial no Brasil, é herdeiro do latifúndio escravista e não tem nenhuma origem simples. “Ah mas tem uma exceção” - sim, existe exceção para tudo, mas perceba que é uma gota no oceano e note também que existe uma hiperinflação de cobertura dessas histórias. Todo mundo já deve ter ouvido a história do homem verde cor de rosa que ficou rico vendendo bala de coco, mas ninguém lembra que em 99% dos casos os ricos são todos herdeiros (no Brasil, importante lembrar, do latifúndio escravista).

A ideia é criar vários elementos de identificação com a burguesia para que as pessoas que não são burguesas se sintam parte dessa classe. Um desses mecanismos é o consumo de luxo, o pobre mesmo parcelando até o talo determinado produto, ele ainda o quer, porque com ele, há essa ilusão de poder de compra e de identificação com o burguês.

E veja como isso é algo bem coordenado : muita gente que não tem um pingo de dinheiro na conta, defende privatização por supostamente ser mais eficaz, mais barato, porque a concorrência do livre mercado, e um monte de groselha - é assim que o pobre defende a privatização. O rico defende por uma razão bem simples : ele pode comprar essa empresa, criar um monopólio e ficar ainda mais rico de graça.

Aqui a reflexão se fixou no Valor Econômico, agora imagine a quantidade de publicações, jornais, documentários, filmes, etc, que continuam fazendo ressonância dessas mesmas ideias. A internet é só mais um lugar dessa reprodução - com um detalhe muito importante, aqui você também é convidado para produzir conteúdo.

Você consome, mas também produz. O Thiago Nigro muito provavelmente é um leitor do Valor Econômico, mas ele nunca pode falar sobre, escrever sobre, o que eu estou dizendo, a não ser que ele fosse filho de algum cara da mídia, ele não teria um espaço para também produzir conteúdos.

(Eu sei que existe uma grande diferença do Thiago Nigro e de qualquer influencer de economia menor, mas veja, o último acha que é o Thiago Nigro também, mesmo com toda diferença de classe que exista entre os dois)

O que a gente precisa perguntar é por que ele decidiu produzir conteúdos digitais ? Se nós estamos pensando em termos capitalistas, é porque existe uma demanda (fabricada) muito grande para esse tipo de conteúdo. Jornais como Valor Econômico falam muito das empresas, dos seus indicadores, etc, mas o que eles não falam é no como fazer. Se a gente fosse falar na real, teríamos que explicar o colonialismo, a escravidão e como eles tomaram o Estado de assalto. E isso tiraria aquele véu de identificação, até porque o pobre hoje é mais fácil ser herdeiro de um escravo do que de algum nobre.

(Do cara mais fascistão ao cara mais estudado da universidade, há essa crítica contra a “grande mídia”. Como se a internet não fosse parte também dessa “grande mídia”, em especial se formos considerar as plataformas digitais serem dominadas por monopólios - Isso acontece eu creio, porque como uma justificativa para ler algo, a ideia de ver algo “oculto das grandes empresas” é muito forte. Isso é só uma hipótese, talvez precisa de mais trabalho para pensar isso depois)

Aí entra o Thiago Nigro. Ele é o cara que parece com você, tem gostos pessoais como você, mas que conseguiu chegar lá e te dá dicas de como chegar também. A linguagem informal da internet é muito importante, em especial quando estamos falando de vídeos e streams, ainda mais numa sociedade narcisista e individualista, parecer como você é algo muito importante para acontecer alguma identificação. Você provavelmente conhece ou já viu um Thiago Nigro por aí, talvez você seja Thiago Nigro. Até interessante a gente lembrar o que foi a moda dos Vlogs no Youtube, as pessoas mostravam a vida delas, suas opiniões, suas ideias, as coisas que compravam e isso também virou um produto - a pessoa, a personalidade, a forma de se comunicar e o mais importante, os hábitos de consumo.

Tem um vídeo muito importante do Thiago Nigro que ele mostra a casa dele e lá tem uma série de produtos, coisas, atividades que ele diz fazer, que servem para que o público se identifique com ele. Então, ele tem uma sala de cinema, quantas pessoas não queriam ter a mesma coisa ? Ele mostra a namorada bonita, quantas pessoas não gostariam de ter uma namorada bonita ? 

A internet cria uma relação parassocial, entre o criador e o consumidor muito mais poderosa que a TV. Não é que Thiago Nigro seja um homem, uma entidade separada do consumidor de seus conteúdos - todos são Thiago Nigro, ele representa um tipo, quase que um software de personalidade no estilo cyborg, que existe na sociedade. Uma máscara que todo mundo veste para interagir e existir na sociedade. Fora esse elemento de identificação radical, temos as relações parassociais.

O que seriam essas relações parassociais ? É você se identificar com o criador de conteúdo, criar uma relação com ele, sentir coisas por ele, mesmo que vocês nunca tenham se encontrado ou se relacionado de verdade. Acho que o exemplo mais emblemático são aquelas streamers seminuas da Twitch onde você tem pessoas literalmente viciadas em dar dinheiro para aquelas meninas. Eles agem como se fossem pessoas próximas, como se vivessem literalmente com eles.

O Thiago Nigro é como se fosse da família, “aquele Primo Rico”. Por isso que ele ganhou tanto espaço, ele oferece um “como fazer” e de quebra, cria uma relação de identificação ainda maior. As pessoas de verdade acham que o Primo Rico é como elas. Por mais quebradas que sejam as suas dicas, a relação de confiança é tão grande que as pessoas seguem, falam dessas dicas, e o mais importante, reproduzem isso por aí. Eventualmente, e eu quero te assustar com isso, todo mundo vai ter que ser a menina seminua da twitch, o Thiago Nigro ou o coach magnético da PQP.

Por mais que você que esteja lendo saiba que essa ideologia do empreendedor é furada, a questão é que se você chegar numa pessoa aleatória na rua hoje e perguntar se quer abrir um negócio, ela vai achar isso mais viável do que organizar algum ato contra a violência policial. É algo tão reproduzido e posto na cabeça das pessoas, como um repertório, como uma possibilidade de construção de mundo, que por mais furada que seja, elas acreditam que aquilo é viável.

Você só faz coisas que acredita, não é possível dar um passo sem acreditar que o chão é sólido. Nós não ficamos igual os filósofos mais tontos, questionando se cada passo que damos é verdadeiro ou falso, há naqueles milésimos de segundo enquanto andamos, um pequeno salto da fé, onde pisamos sem saber de verdade se o chão é sólido. É por isso que a gente cai quando pisa em um lugar diferente.

É por isso que todo dia uma menina viaja para a Europa acreditando que vai enriquecer se prostituindo, por isso que tem famílias até hoje que vendem seus filhos para o tráfico de pessoas, por isso que tem jovem que entra no crime acreditando que vai ser o próximo Al Capone. Esse é um lado da ideologia do empreendedorismo que não aparece muito, não é mesmo ?

(Podemos argumentar que são tipos de fé diferentes. O meu ponto é que todo mundo sabe a furada que é pisar no chão molhado, ou aceitar uma proposta de morar no exterior de forma ilegal, "mas daquela vez vai ser diferente" - é sempre isso que nós acreditamos)

A gente ouve as histórias, sabe que no final não vai dar certo e ainda sim, há uma glorificação desse tipo de situação. Quanto mais precário, mais a história fica bonita - a velha ideologia do sofrimento cristão à serviço da ideologia do capital. A ideia do esforço, do trabalho excessivo, das horas extras e favores não-pagos. É deixar de “mimimi”, parar de pedir respeito, direitos trabalhistas, folgas, aumentos de salário (é só economizar não é mesmo ?).

Isso é definido, tratado, considerado, o que é a realidade. A gente sabe bem que o realismo, como uma ideologia, sempre precisa definir o que é real a priori, antes de fato ver a realidade. Por isso realismo capitalista, é como se a nossa imaginação, a nossa língua, os nossos valores, os nossos ídolos, os livros, os filmes, a filosofia, etc, todos tivessem como algo naturalizado e normatizado, e visto como a única coisa viável, a exploração da humanidade em torno da reprodução infinita do lucro, isto é, o capitalismo.