O que é amar sem ter um coração ?

7 jun 2021

Às vezes eu me sinto como uma criatura inferior às demais. Em especial, às criaturas mais velhas do que eu. Não é querer defender uma nostalgia com o mundo velho ou de querer dizer que os meus antepassados eram melhores. Ou de querer dizer que o passado era melhor que o presente.

É mais uma constatação de que talvez entre a época da carroça e do smartphone algo se perdeu no caminho. Como se tivéssemos perdido uma parte essencial do nosso corpo, da mesma maneira que perdemos nossas caudas.

Quando eu estava ouvindo "TTFN K ?", senti uma sensação estranha. Uma espécie de mistura de saudade de alguém, de um amor, de uma amizade, de alguém distante. A música é um cover de uma música chamada We'll meet again de Benny Goodman and Peggy Lee dos anos 50 no pós guerra. A interpretação mais óbvia é a de que é uma música sobre um casal que se separou por causa da guerra. O marido ou namorado, teve que ir pro front e a música trata dessa esperança de que ele talvez volte. Nós não sabemos se volta ou não, mas a música segue, como uma celebração da esperança.

O contexto do cover é completamente diferente. O álbum Virtual Utopia Experience do grupo Death 's Dynamic Shroud foi lançado alguns anos atrás, 2013, 2014 por aí. O mundo globalizado é o nosso mundo da rede, das grandes plataformas, do capitalismo financeiro. Nos anos 50 nós ainda éramos fordistas e o sonho do American Way of life estava à todo vapor. Nessa época até o Brasil foi o país do futuro.

O casal dos anos 50 talvez tenha namorado escondido, era uma sociedade ainda muito conservadora. Um mundo muito rígido, reacionário, ainda com os resquícios do velho mundo. Ainda assim, os jovens namoravam, pulavam os muros da escola (naquela época digna da crítica do Roger Waters) para ir ao cinema trocar beijos e carícias.

Enquanto os casais de hoje podem nunca ter se tocado. Os nomes falsos, os elogios, os "beijos" expressos pelos emoticon, os rostos editados pelas ferramentas de edição, as palavras escritas pelos aplicativos de conversa - uma espécie de amor que nunca pode ser sentido. Diferente dos anos 50, temos toda a liberdade do mundo, mas ninguém sai para namorar.

Querer se reencontrar com alguém se torna algo meio estranho hoje em dia. As pessoas se veem o tempo todo por conta da conexão pela internet. Não há saudade. Sem contar os casos onde nunca houve um encontro para começo de história. Como vamos sentir saudades de alguém que nunca conhecemos ?

O pitch ligeiramente desafinado, a voz distante, os pássaros inseridos digitalmente, somado ao contexto histórico atual, dão a sensação de saudade do amor. Como se algum dia nós tenhamos amado alguém, e precisássemos desse amor agora nesse momento difícil vivendo sozinhos. A questão é que nunca houve amor e sempre houve a solidão. Não há memórias a serem lembradas.

O álbum em si é uma crítica ao vaporwave. Esse estilo musical trabalha com remixes de sons de outras épocas, desde músicas até jingles comerciais. Alguns chegam a afirmar que é uma crítica à sociedade neoliberal dos anos 80. Porém, o que muita gente esquece é que nunca saímos desse mundo neoliberal dos anos 80 !! Até ontem, Trump era a grande estrela do momento, como nos anos 80 !!

O vaporwave começou como shitpost, como uma sátira e logo foi incorporada à indústria musical. Se tornou pasteurizada, sem sentido. Aí que entra cena o Virtual Utopia Experience - como uma crítica à crítica, mas também só como música e nada mais.

Ao invés de usar apenas samples de outros sons, também se usou instrumentos musicais reais. Ao invés de pretender estar fazendo uma critica social foda, simplesmente se fez música. Não é um álbum pretensioso que busca ser comercial, ou que pretende mudar o mundo, ou algo do gênero. O mais interessante dele como um todo, é de um lado ser música por música, do outro, a crítica da crítica como uma defesa da experiência de ouvir música.

"Vou te ver novamente" talvez não tenha nenhum significado. Principalmente, para a nossa geração. Nós nunca amamos ninguém para sentir saudades. Mas em algum momento, nós sentimos alguma coisa e talvez seja disso que nós tenhamos saudade.

No meio do caminho, todos nós deixamos de ser humanos.

Se ouve música hoje em dia sempre com uma tarefa a ser feita. Se esperando algum resultado. Há playlists para tudo - do trabalho ao sexo, ou melhor, só do trabalho. O biocapitalismo tornou todos nós trabalhadores 24 horas nas plataformas. Se descansa com o propósito de repor energias para o trabalho, durante o descanso se joga videojogos, se escuta música em uma plataforma, se grava as informações do sono para avaliar se dormiu bem ou não.

Em certo momento, o vaporwave passou a fazer parte da alienação, ao invés de uma crítica irônica. Assim como o rock deixou de ser rebelde para ser reacionário. Uma hipótese é de que ao nos tornarmos CEOs de nossas empresas, nos tornamos pessoas que querem resultados, que buscamos o EV (effective value) de tudo que fazemos e temos uma tara gigantesca por estatísticas.

Não gostamos mais do Iggy Pop por falar que quer comer uma menina, nós queremos o nazismo do Nando Moura que vende mais.Não importa se o solo do James Williamson é selvagem, mas que o Dave Mustaine possui mais técnica na guitarra. O vaporwave por muitas vezes, é uma música para quem não tá nem aí para a música, mas quer um fundo ou quer parecer alguém legal. Nos escritórios das maiores empresas do mundo, não tenha dúvida que as pessoas escutem Macintosh Plus ou Blank Banshee. A própria música passa a ocupar a função de alienar - A música clássica passou por um tempo sendo o símbolo da exclusão e de status social. O filisteu não ligava para Bach, mas ouvia Bach para ser culto diante das pessoas.

Virtual Utopia Experience sabe que não vai mudar isso. Sabe que no final do dia, nós continuamos presos às máquinas. Não vamos tão cedo destruir esse capitalismo ou resolver os problemas do mundo. Mas sempre tivemos esse problema, esse horizonte raso que o mundo capitalista nos oferece. Ainda sim, dentro do próprio capitalismo nós criamos lugares onde não há capitalismo, sem o neoliberalismo, sem as perseguições, os medos de miséria. As heterotopias, nossas pequenas utopias em pequenas esferas de convivência. O lugar onde podemos imaginar um outro mundo, um não-lugar melhor para todos.

A internet é esse lugar que um dia foi isso. Um dia ela foi livre e servia apenas como ferramenta de comunicação. Conseguimos conversar com pessoas de outros lugares do mundo, aprender coisas novas, conseguir filmes, livros, músicas de todo tipo. Hoje a internet pertence ao grande império da capital, ela é monopólio do Google, Amazon, Microsoft e Facebook. Nós devemos a nossa vida para essas plataformas, somos escravos delas.

Sentar, ouvir um álbum que preza pela experiência de ouvir música, sem aquela exigência de ouvir algo produtivo ou de ficar dando feedbacks dentro de uma plataforma. Talvez seja isso que nós tenhamos como utopia virtual. Como um não-lugar dentro do não-lugar.

Nós jovens eternos do mundo, tentamos explicar porque não sabemos nosso gênero, ou porque somos ansiosos, tristes demais, ou porque precisamos viver chapados o tempo todo para funcionar, com teorias psicológicas das mais diversas. Mas é necessário lembrar que para haver psicologia, é preciso haver subjetividade, é preciso ser gente, é preciso ter corpo. Nós todos somos entidades biomecânicas sintéticas sem coração, não somos pessoas como as pessoas algum dia foram. Não apreciamos arte, não fazemos sexo, não sentimos prazer, não gostamos de música improdutiva, não conseguimos ler histórias, não gostamos de viver. Nenhum de nós nasceu de uma vagina, somos todos feitos em fábricas.

Eu ainda fui alguém que cresceu sujando o pé de lama e sentindo o corpo dos rapazes quando jogava bola. Sou de uma geração de transição, alguém viveu parte da vida fora da internet e sabe que lá fora existe um mundo diferente deste. Ainda sou capaz de chorar ouvindo uma música, pois a música sempre foi tudo o que eu tive comigo. Meus pais se adaptaram bem ao século XXI, me deram videogames, computadores, mesadas, cursos profissionalizantes. De certa maneira, sempre fui viva demais para o meu tempo. Sempre quis fazer mil coisas, porém, ninguém queria fazer comigo, pois todos já haviam desistido de viver. Acabei por me tornar uma espécie de híbrida, parte de mim sabe que é gente, outra parte sabe que é máquina. Isso me tornou uma criatura estranha que sabe muita coisa mas nunca teve muita experiência com nada. Eu sei algumas coisas, vivi outras, mas no final do dia, eu ainda sou menos gente tanto quanto essa nova geração.

Mas eu sei que para ser gente, eu preciso ser artista, amar a poesia, amar os corpos dos homens e das mulheres, sonhar com outras possibilidades de mundo para viver.

As próximas gerações talvez nunca saibam o que é ser humano. O niilismo vai chegar a tanto, que não saberemos mais quem é feito de carbono e fibra de carbono. Blade Runner se institui.




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