Marxismo, anti-comunismo de esquerda e de direita

 Escrito em 14 de jun. de 2023

 

O Brasil tem uma doença muito forte chamada reacionarismo. Ainda não chegamos a uma compreensão mínima do papel da crítica, muito menos da abordagem científica da análise marxista.

 

O que se tem de crítica contra o marxismo, não raro se resume à "transformaram o marxismo numa religião", como se isso fosse uma questão da esquerda e não parte de uma interpretação liberal. O movimento que é feito é de acusar que a esquerda é muito fanática, daí vem a ideia do "stalinismo", que há um culto à personalidade de Josef Stalin e isso criaria militantes cegos, incapazes de enxergar a "realidade", e interpretam o marxismo como uma religião.


Isso é uma inversão da realidade : na prática quem produz e quem precisa de fanatismo é a política liberal. Ela ainda baseia suas teorias, sua política, em mero idealismo. É ela que trabalha em construir narrativas em questões metafísicas, como liberdade, como empreendedorismo, democracia (no sentido abstrato da palavra) e são os teóricos liberais, que dão um valor extremo à disputa de meras discordâncias gramáticas.


O debate liberal é uma disputa entre homens livres empreendedores, todos concordam com a base material de reprodução do capitalismo, o que discordam geralmente se resume a questões muito pontuais. Eu realmente diria que uma conversa entre um petista e um anarco-capitalista iria ser amigável, com uma breve discordância se os seres humanos merecem se alimentar.


Se as nossas discussões aqui na esquerda, por vezes, de fato, repetem esses vícios do debate liberal, é muito mais uma questão de que, de uma maneira geral, a nossa sociedade está com uma consciência geral muito reacionária. Tem gente que acusa, por exemplo, o PCB de ser LGBTfóbico e machista, se o é de fato, se trata meramente de uma reprodução da sociedade em que vivemos.


Se os nossos partidos reproduzem a ideologia liberal, é sinal que, não que devemos abandonar os nossos partidos, mas que internamente, a luta continua e a gente precisa avançar para que isso não se repita. A luta classes continua dentro do partido também.


Se a organização lida com isso, aí já estamos fazendo uma outra discussão. Querer tratar os partidos de esquerda como mônadas, espaços isolados da sociedade, que não são influenciados pela sociedade em geral, é no mínimo, desonestidade intelectual. O militante é alguém, por incrível que pareça, uma pessoa que faz parte da nossa sociedade, ele vai reproduzir os valores dessa sociedade. Se ele tem consciência disso ou não, é outra discussão.

Se há uma postura fanática religiosa com retórica marxista na esquerda, isso é um problema que supera a esquerda, isso é muito mais uma expressão da própria política liberal, do que culpa de um "extremismo geral de esquerda". O contrário é muito mais verdade, expressa uma incompreensão, tanto de quem crítica essa postura, como de quem a reproduz, com o que de fato é o marxismo. Não é a radicalidade a causa da expressão do liberalismo no partido, é a falta dela.

Há duas questões que eu quero abordar nesse texto : a análise materialista-histórica dialética, o que ela é no seu grosso e o caráter da crítica, a sua direção, se é de esquerda, ou reacionária.


O que é o método materialista-histórico dialético ? E aqui eu prefiro tomar uma postura deflacionista, o que isso significa ? Que eu não vou tratar o marxismo como um dogma fechado em si mesmo, ou como uma grande teoria filosófica com sistemas e pressupostos fechados. Se outros marxistas tomam a teoria dessa forma, sinto informar que é um engano.


Porque de fato ele não é nada disso. Esse espantalho do marxismo como um idealismo utópico, nada mais é que uma incompreensão e nada mais que isso mesmo, mero espantalho.



Precisamos perguntar : qual é o grande contraponto da filosofia marxista ? O idealismo alemão. Em que consiste esse contraponto ? É uma questão que merecia um texto só sobre isso (Marx e Engels abordam em diversos textos), podemos resumir, até para manter a simplicidade, que é na própria compreensão sobre a realidade material.
 

Para Marx, a realidade existe, e é essa materialidade, da relação do homem com a natureza, que determina seus desdobramentos históricos. Peguemos o exemplo do suposto machismo e LGBTfobia do PCB (não temos provas então não podemos afirmar se é verdade) : o que leva a reprodução do machismo e da LGBTfobia em uma organização ? Seria a mentalidade dos militantes ? O espírito do preconceito toma conta de seus corpos ? Marxismo bebe muito do método científico, ele vai olhar para a materialidade.


Dentro do campo marxista, há posições que são incontestáveis, não porque é um dogma, mas porque é uma teoria comprovada cientificamente. Se nós não questionamos sobre a questão da mais-valia, não é porque ela é a palavra de Deus, mas sim, porque assim como a lei da gravidade, ela é uma teoria que foi testada e comprovada.


Isso significa que dentro desse campo, assim como em relação às leis da gravidade de Newton, há a possibilidade de novas descobertas. A física quântica, ao descrever o mundo atômico, por instância, descobre que as leis de Newton não se aplicam para aquele contexto. Da mesma maneira, dentro do marxismo, a lei da mais valia pode ser desenvolvida : será que as mesmas leis se aplicam da mesma forma em uma economia digitalizada ? Será que é preciso uma nova descrição para esse contexto ou ela já se sustenta da forma que é ? É preciso estudar para comprovar e desenvolver as nossas teses.

Entra a questão nacional, cada realidade nacional necessita de uma análise própria. A nossa tarefa é construir um marxismo, por instância, brasileiro, assim como existem outros marxismos, como o russo, o chinês, o cubano, etc. Precisamos também beber de suas análises, com o cuidado de compreender a peculiaridade de cada lugar.

Há uma abertura, por isso o estudo da teoria é muito importante, que a gente possa também, contribuir para o estudo da nossa realidade social. É importante, como marxistas, em especial, nós que somos socialistas científicos, compreendamos esse espírito do estudo científico dentro do nosso campo.

Lenin é bom não porque ele é um santo que teve uma revelação - é bom porque ele foi capaz de teoricamente, assim como o próprio Marx e Engels, criar uma teoria. Isto é, da mesma forma que Darwin, Newton, Galileu, etc - teoria como parte de um estudo sistemático, ou seja, ela foi testada e comprovada.

Voltando na questão do PCB. Nós aqui responderíamos analisando as condições materiais, que é, por exemplo, a instituição da família ocidental patriarcal na sociedade brasileira. Então machismo, por exemplo, tem muita ligação com a própria estrutura de poder interna, que reproduz a organização da família, por instância.

Mas apenas isso seria simplificar até demais. Os homens não são figuras estanques que não respondem ao seu ambiente, as pessoas percebem, nesse caso por serem militantes minimamente informados sobre essas questões, que algumas estruturas organizativas são a raiz do problema, ou parte dele. Então internamente, supondo que de fato a organização seja machista, há uma luta interna para que isso seja diferente.

A partir das hipóteses, podemos também definir nosso estudo, testando a veracidade dessas afirmações. É uma questão cultural interna ? É só a estrutura de poder do partido ? É falta de estudo sobre a questão ? Etc e tal. Nesse caso, até por se tratar de uma questão interna, como alguém de fora, eu sequer acho tão válido assim ficar cobrando. (Sinceramente, falando sobre isso, eu nem sei se esses boatos são verdade)

E aí a gente parte para discutir o seguinte : qual o propósito da crítica ? O que chamar o PCB de machista e LGBTfobico publicamente de fato contribui ? A crítica interna, no seio do partido, por mais que não tenha critérios científicos e todo cuidado com o método materialista-histórico dialético, tem como objetivo fazer com que o partido avance nas suas lutas. A crítica interna, não deixa de ser válida por simplesmente não ter os critérios teóricos em mente, apesar de que com a teoria, fica mais fácil localizar a raiz dos problemas e corrigi-los, eis a importância do estudo da teoria. E bem, sinceramente, nós que estamos aqui de fora, temos pouco a dizer sobre a organização interna de um partido - ainda mais um que ainda atua ainda hoje. (Não significa também, que não seja possível fazer um estudo histórico sobre, por exemplo o PCB e sua atuação, mas perceba que é um outro tipo de crítica)

Publicamente, a crítica não se dirige unicamente aos membros do partido, não se trata de uma sinalização interna, e ela nem sempre tem o propósito de avanço do próprio partido em sua luta.

Vou dar um exemplo prático : Srta. Bira acusa o PCB de ser LGBTfóbico por conta de um texto de 2021 falando sobre identitarismo liberal e ela mesmo, só fala sobre a esquerda identitária.

E a gente precisa fazer um exercício epistemológico : será que esse identitário alienado e narcisista existe lá no PCB ? Em nenhum momento é apresentado provas materiais ou uma tentativa de questionar se o militante cirandeiro de fato existe.

Por isso a abordagem científica é importante. Não adianta, seja internamente ou aqui de fora, ficar criticando os dragões que o PCB mantém nos seus diretórios se eu não sei se esses dragões existem de fato.

A gente pode trabalhar com a hipótese que, considerando o fato da sociedade brasileira ser LGBTfóbica, que isso naturalmente pode se repetir internamente no partido. Note, é uma hipótese e merece ser testada. Até lá são hipóteses.

Então a crítica dela não tem propósito científico, ela não tem critério teórico, é uma crítica que serve única e exclusivamente, para fazer uma sinalização política. Note que em si, desvelada a falta de compromisso científico, fica difícil dizer qual é o objetivo dessa crítica.


Ela queria criticar a LGBTfobia nos partidos de esquerda, mas note que ela só se preocupou em expor o PCB - hoje, um partido pequeno, que está numa fase de reconstrução depois de sua destruição nos anos 90 e que passou boa parte de sua história ilegal. Qual foi o critério para escolher o PCB ? Infelizmente, se a gente for falar em questão de relevância, hoje nenhum partido revolucionário vai aparecer - sim o PT, o PSOL, PSB e cia, que são partidos que se dizem de esquerda e na prática, são uns liberal contra-revolucionário. Mesmo sobre partidos radicais, qual o critério para falar de PCB e não de outros ? Nenhum, foi uma escolha arbitrária.

E aqui eu mostro o caráter reacionário de uma crítica. Se trabalha com categorias ideais nem sempre claras e objetivas, se espera que, por exemplo, o partido as cumpra e se não cumprir, nós temos que descartar, nesse caso, toda perspectiva revolucionária, "porque não dá certo".

O interesse não é que o PCB avance nas suas lutas, é destruir o PCB. Ainda que ela tivesse boas intenções com toda sua pompa pós-moderna e seus doutorados sei lá onde, seus monólogos narcísicos sobre sua vida como prostituta preta e pobre. Que ela quisesse apontar para um problema, com toda boa intenção, mesmo sendo alguém aqui de fora, a forma, o conteúdo em si, só serve para atacar publicamente.

Note que se a crítica tivesse sido bem fundamentada, por ser uma figura pública de relativa relevância, o PCB seria obrigado a responder e a fazer um debate sobre a questão. Pode ser que ele faça, única e exclusivamente, porque ela tem números e isso seria uma oportunidade do partido responder essa crítica - pode ser. Por conta da natureza dispersa da internet, pode ser que ninguém veja a versão do PCB e é isso mesmo, o debate público hoje não se parece muito com uma conversa, ela é muito mais um monte de gente gritando para ter atenção.

Como o alvo dessa crítica não é necessariamente o PCB, é uma sinalização pública, onde eu, você ai, seu avô, etc, etc  que muitas vezes nem tem nada a ver com o PCB ou com a esquerda em si, vão esbarrar nessa capa de jornal que é o Twitter e vão dizer "olha lá, os stalinismo LGBTfóbico". Dou o exemplo de Bolsonaro chamando Flávio Dino de “gordo comunista” - isso serve a quem ? Lembrar aquele estereótipo reacionário do burocrata “stalinismo”, gordo enquanto o resto morre de fome.

Isso era para ser uma crítica bem-fundamentada com as experiências socialistas ? Mas olhe, ele mostrou alguma evidência disso ? Não e nem quer, ele quer só atacar a esquerda. Só isso em si não caracteriza a crítica reacionária. Ela fala muito de identitarismo e a crítica vai muito no sentido de “vocês ligam para isso, mas não ligam para aquilo”. Tem aqui um elemento elitista, uma perspectiva academicista que desconsidera a capacidade dos próprios militantes de perceberem esses problemas. (Bolsonaro em toda sua “simplicidade”, não deixa de ser elitista, para ele todo mundo é burro e ele seria o espertalhão, note que em Olavo de Carvalho há esse mesmo movimento)

Se tem esse problema internamente, como eu já pensei nessa hipótese no texto, vamos ver reações a isso. E a crítica dela também vai num sentido de descaracterizar a militância, jogando essas questões de identidade meramente como “identitárias”. Faz sentido a gente criticar os chineses por serem chineses demais ? Não né, é óbvio que as pessoas vão se organizar conforme com quem se identificam, mesmo pessoas de minoria que são conservadoras como ela. Não deveria nem ser um debate, é um fato comprovado e fácil de se verificar, condenar as pessoas por se organizarem politicamente por conta disso, é só burrice. É como querer condenar as pessoas por terem sentimentos. (Ignorar a diversidade da classe trabalhadora é uma tarefa que a ideologia liberal faz dia e noite com seu debate frágil sobre igualdade).

A diferença de um movimento para outro, se ele é de esquerda ou não, o que vai caracterizar é a sua posição na luta de classes. O movimento feminista liberal (que sim, merece uma crítica pública mais forte) não se preocupa com todas as mulheres, muito menos as pretas, pobres, muito menos ainda as trans. Ele é conservador porque não desafia a organização do capital, é conservador porque ainda luta por um espaço dentro desta sociedade liberal. É basicamente um esforço das mulheres liberais de conseguirem entrar no clube de cavalheiros burgueses.

Isso merece atenção, não o PCB tentando recolher seus pedaços depois de ter sido destruído nos anos 90, perseguido durante toda a ditadura militar e também na era Vargas. Não é ali o foco do poder dos poderosos, é lá em cima e Bira parece acreditar fazer parte dessa elite, para lá do alto, pisar em um bando de comunista tentando reconstruir um movimento massacrado no Brasil.

Nesse ponto sua crítica é reacionária. E muito do nosso debate hoje é só isso : reacionário. Se critica a esquerda por supostamente não abrigar o movimento negro - isso é feito de dois movimentos : apagamento da nossa militância negra junto aos comunistas e novamente, negar as contradições internas dos partidos comunistas.

Se há certa dificuldade do partido em aderir teses anti racistas e de compreender a noção de raça, dependendo do lugar, também uma reprodução do racismo, há também linhas que internamente disputam para que isso seja o contrário. Note que nós não estamos negando que o racismo se reproduz no seio do partido, como explicamos lá atrás, simplificando até, porque esse partido faz parte de uma sociedade racista.

Não significa que isso seja aceitável, mas que é necessário, também dentro do partido, disputar espaço e hegemonia, por exemplo, que sejam adotadas as teorias anti racistas.

A nossa posição não é de se aceitar um determinado dado da realidade. É o de compreender esse determinado dado e a nossa capacidade de alteração dessa realidade. Bira olha para essa contradição interna e se imobiliza, acredita que a realidade não consegue ser transformada.

Isso é, par excellence, o cúmulo do reacionarismo, observar o mundo, como se ele fosse imóvel, sagrado e imutável. Basta um estudo mínimo historiográfico para compreender, não só a capacidade humana de transformação do mundo, como também como o próprio mundo, numa compreensão mínima, também muda.

Voltamos para o início. Nosso problema essencial é a incompreensão científica que possui o marxismo e a função que a crítica tem em cada situação. O nosso trabalho é o de continuar o trabalho científico de Marx e Engels, que se comprovam sólidos e são importantíssimos para compreensão da nossa realidade. Conhecimento é tecnologia, essas ferramentas mudam a nossa percepção da realidade.

A crítica precisa sempre beber dessa fonte, só assim ela vai ser efetivamente certeira e nós conseguimos testar diferentes hipóteses, de forma científica, trabalhar com o que comprovadamente funciona.

Internamente ela funciona para melhorar o nosso trabalho e progredir ao socialismo. É preciso ter em mente que o espaço de debate público é liberal. Não há interesse dele em promover o socialismo.

A nossa posição pública deve ser a de denunciar o reacionarismo e seus limites, dentro das possibilidades de promover nosso projeto político. Não raro essas críticas públicas com retórica de esquerda, com esse viés acadêmico meio afrancesado, servem como eco para o discurso reacionário.

Liberal pouco se importa com inconsistência, hipocrisia, em ter discurso contraditório. Pode ser que todo dia o liberal bata na mulher dele e depois reclame do "masculinismo" da esquerda. Todo dia um partido de direita fazendo projeto genocida contra povos originários e a nossa população negra, mas é fácil denunciar que a esquerda tem dificuldade com pauta racial.

A função disso é desqualificar a nossa luta. E não tem nada errado com isso !! É para isso que o braço da mídia, com o estabelecimento do debate público, precisa fazer. Todo dia um professor universitário, um policial e um jornalista, acordam suando com medo do comunismo.

O comunismo debaixo da cama deles, no armário, na casa do vizinho, por toda parte. Bira só é mais uma parte disso. É um medo quase que cósmico, pode ser que ninguém acredite mais em Deus, todavia, não há uma crença mais firme que a revolução um dia vai acontecer e vai eliminar, junto da burguesia vampiresca, todos esses parasitas que apesar de menos ricos, se beneficiam desse sistema.

 

 


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