Sobre a tal da quebrada e a tal da favela - um problema de comunicação social

Pude ver o vídeo da discussão do pessoal da Soberana, do Galo e Chavoso da USP  e a minha crítica da idealização do que é o favelado, da quebrada,  etc, segue. Ainda sim, acredito que ali aconteceu uma coisa muito especial que é fazer as pessoas discutirem o que é ser de esquerda, como fazer uma revolução, como alcançar as pessoas - aquilo não foi um podcast, foi uma conversa, não foi um conteúdo de internet, foi um dialógo que merercia inclusive uma transcrição.

Essa discussão se perdeu no meio de gente chorando com a crítica do Galo ao Humberto, e às vezes do Chavoso e tal, e mesmo da forma que a própria Soberana se posicionou. Preciso dizer para vocês o óbvio, aquelas pessoas ali são pessoas, tem sentimentos, tem opniões, tem equívocos. E tá tudo bem, não tem nada de errado nisso. O meu objetivo é tentar fazer a discussão que não foi feita na internet. Fazer o exercício de tentar entender aquelas pessoas, ter empatia, ter companheirismo.

É muito difícil nós não passarmos a aceitar a teoria da internet vazia, porque não é possível que ninguém consiga aproveitar nada, ninguém consiga aprender, ninguém consiga se comunicar e é foda, pois isso sempre acontece. É incrível como a conversa em si não recebeu nenhuma atenção.

Hoje a educação superior generalizada proporciona um fenômeno muito interessante : que é você pobre pegar a universidade, a academia, os intelectuais, etc, discutindo sobre você - o pobre - e você, porque não bobo nem nada, sabe muito bem que é uma discussão completamente alienígena. O Chavoso apontou isso, é muito comum essa coisa de discutir as coisas sem nenhum escopo material, sem ter contato com o "objeto" de estudo.

Isso acontece quando se fala de favela, ou da quebrada, por exemplo. Existe uma ideia difusa de que o pobre é sempre sujo, mal arrumado, sempre escuta funk, ou pagode e ponto final, todo mundo é igual, vítima do Estado e do crime organizado (que por vezes estão envolvidos um com outro). É um tipo ideal, mas já há bastante tempo, nós podemos dizer que isso mudou.

Não que esse pobre do estereótipo não exista, você com certeza vai encontrar em qualquer favela que você for, mas existe uma certa diversidade oculta, que apaga que na favela tem movimento punk, tem roqueiro, tem religioso, tem gente chique (literalmente terno e gravata, vestidos de seda e outras coisas chiques), góticos, que as pessoas muitas vezes tem coisas como TV, celular, computador, etc. Dependendo do lugar, a condição de vida não é aquela miserável que sempre é mostrada na TV.

Há essa ideia que se você entrar na favela você vai encontrar vários moleques armados e muita droga, prostitutas por todo canto, aquelas casinhas improvisadas, esgoto ao céu aberto e tal. E nem toda periferia é assim, existem muitas periferias que tem camadas que podemos muito facilmente chamar de classe média. São aqueles que subiram durante os governos anteriores de Dom Lula, mas também são pessoas que vieram viver na favela porque sua renda diminuiu. Isso é tão verdade que existe uma onda de várias pessoas “empreendedoras da favela”, e empreendedor não faz as coisas sem alguma renda (não existe meritocracia, meu bem), que representam essa camada de classe média que vive na quebrada.

Esse é um elemento sociológico que muda completamente o paradigma de comunicação com o favelado que se tem hoje.

Se o Brasil é múltiplo, a favela como um fenômeno também é e possui uma diversidade tremenda. Tanto a Soberana, como o próprio Galo e o Chavoso, como boa parte de nossos criadores de políticas públicas, militantes, intelectuais, acabam caindo nessa simplificação da imagem do pobre e da favela.

Não estou negando que não exista violência, muito menos que a miséria não existe - fato é que uma cidade é violenta e os lugares que são chamados de violentos, nem sempre são considerados como tal por conta de dados estatísticos objetivos. Às vezes meus caros, é só racismo mesmo. Vamos tentar pensar dialeticamente : se um lugar vive em guerra constante ele fica simplesmente impossível de se viver. Até mesmo nas favelas mais violentas, existe algum nível de paz que permite que as pessoas façam as coisas que tem que fazer da vida. A maior parte da mão de obra em grande parte vive na favela, se fosse todo esse caos que é pintado, o país não funcionava.

A gente não pode esquecer a função de localizar a violência e a rede do crime na favela. É uma mistura de desejo contra-revolucionário, com racismo e especulação financeira. Por outro lado, não podemos também dizer que a violência da favela é algo causado pelo lugar, como se fosse uma maldição ou algo assim - é uma violência que existe por conta da desigualdade social, por conta de ausências de políticas públicas e em perspectiva, culpa de medidas de austeridade.

(Um parenteses aqui - todo mundo sabe que tráfico de drogas, armas, pessoas, prostituição, são coisas que dão muito lucro. Você realmente acha que o dono dessas coisas vai morar num lugar sem esgoto, sem transporte, ruim de viver, sem internet, etc ? Ele vai é comprar casinha em condomínio fechado, prédio chique, vai viver em “bairro nobre”. Cansa muito ter que explicar isso. “Ah mas vão pegar ele” - você sabe o que é ter dinheiro na democracia burguesa ? Dinheiro é literalmente a única coisa importante para quem quer ser considerado cidadão nessa democracia. O cara vive em lugar chique, conversa com CEO, juiz, delegado, prefeito, e essa gente toda, todo dia e se brincar, é ele que fornece a droga para essa gente.)

É mais barato mandar a polícia matar todo mundo do que fazer um sistema de saneamento básico - e claro, dá mais voto por causa da claque reacionária. Por um lado, é bom as pessoas terem orgulho de onde elas vieram e de reivindicar o espaço que elas têm de origem.

Isso dá um certo gás para lutar e para disputar espaços na política. Por outro, nós não podemos deixar de reconhecer a favela, como um fenômeno urbano, como uma urbanização precária destinada para as camadas mais pobres da população. Enquanto nós somos jogados para nos empilharmos em casas precárias, distantes de tudo (mal tem transporte público em alguns lugares), espaços sem saneamento, sem escola, sem nada - lá nos lugares de cartão postal tem casa de praia vazia do tamanho de uma quadra inteira.

Tem um monte de casas vazias nos centros urbanos, nas praias, nos espaços “nobres”, que poderiam facilmente ser redirecionados para as pessoas que moram nas ruas e para quem vive numa favela. A favela é resultado de um planejamento urbano higienista, racista e com objetivo de precarizar ainda mais o pobre.

É preciso tomar cuidado com essa ideia de se reivindicar favelado, porque é exatamente o que a elite quer : que sejamos sempre miseráveis escravos que trabalham pelas migalhas que eles jogam. O mesmo que eu disse acontece com o nordestino sertanejo, com o sulista, com o carioca, com o amazonense, sertanejo, camponês, etc. Tem muita gente por aí que fica trabalhando com tipo ideal, sem nenhuma base empírica mínima, nenhum estudo básico sobre o tema, comentando sobre o “povo brasileiro” e tirando um monte de ideias de sei lá onde.

Isso dá no que ? No Bolsonaro comendo farofa. Aquilo é o pobre ? Meu amigo, pobre come de garfo e faca, se brincar a gente pega até hashi - Queridos, aquilo lá para mim é o chefe, o corno do burguês, que é incapaz de fazer qualquer coisa sem algum escravo para fazer por ele. Essa gente não escreve, não lê, não trabalha, não se veste, não faz nada. O teu patrão provavelmente é um sujo, um porco, uma pessoa ignorante, a grande diferença é que ele tem quem faça tudo isso para ele. Você não, você precisa fazer as coisas.

A mídia vende muito isso de “pobre sujo” justamente porque ela tem um velho histórico elitista e a gente compra porque é uma ideia que está em todo lugar. Você é o pobre que come farofa (nem vem dizer que não é), você pega a colher, mistura no feijão, no arroz e na carne que tiver e come, por acaso você come igual o porco do Bolsonaro ?

Nós fazemos tudo, nós construímos a porcaria desse país, não tem uma mercadoria, um parafuso, uma verdura, que não tenha sido a nossa classe que fez. Esqueçam essa ideia de que pobre não faz X por ser burro, ou alienado ou sei lá - existem embates políticos, é preciso olhar exatamente isso. Os conflitos não se estendem só entre os patrões e os trabalhadores, existem conflitos internos entre nós (isso tá na obra de Marx). Tratar como burrice e ponto final, mesmo que ela seja um elemento quando vamos falar de bolsonarismo, por exemplo, isso é simplificar demais o debate político.

A pior parte é achar que pobre não sabe das coisas. Como que a gente trabalharia sem saber de nada ? Pedagogia não é tratar os outros como ignorante, pedagogia, dentre muitas coisas é entender que cada pessoa tem algum saber e você precisa aprender o que essa pessoa sabe para você também ensinar algo. Objetivo da comunicação é se fazer entendido, se isso veio na piada, na gíria, no termo técnico, não importa - importa a mensagem ser transmitida.

Isso aqui é para criticar essa ideia de que a gente "precisa falar a linguagem do pobre". Muita gente quer fazer isso não por um esforço pedagógico, mas porque realmente acredita que sabe mais do que o pobre. Uma coisa é ser didático, outra é ser um elitista. Será que a internet é o espaço mais pedagógico para nós desenvolvermos a nossa luta ? Esse é um ponto que escapou um pouco a discussão deles.

Se a gente quer ser didático, se a gente quer deixar uma marca nas pessoas, chamar elas para lutar conosco, será que um espaço como a internet é a melhor ferramenta para isso ? E a gente precisa voltar a falar sobre diversidade - o que todo mundo tem em comum ? Já que responder isso pode ser um lugar comum que facilita a comunicação.

A condição de ser trabalhador e fazer tudo, construir esse mundo, fazer ele funcionar.

Como que a gente faz tudo e não controla nada ? Oras, eles são donos das armas, eles têm o dinheiro, dominam os meios de produção.

Dentro dessa condição, há uma infinitude de realidades, estilos de vida, modos de ser, sexualidades, raças, etcs, os embates políticos dessa diversidade esbarra nessa condição de explorado. Como que a gente se comunica com essas pessoas ? É esse o ponto de toda aquela conversa.

Isso é uma coisa essencial que faltou no debate, o motoboy, o favelado, o intelectual, o sulista - não são existências homogêneas, dentro desses grupos sociais existe uma diversidade gigantesca e o erro vem sendo não saber lidar com isso.

Galo trouxe um elemento importante e não é a ideia de estética, é a ideia de permanência, de ocupação. Ele fala da estética porque é o que fica, que deixa marcas. O grande problema da militância digital é a sua natureza efêmera.

Lenin, Mao, Stalin, Ho, Castro, Sankara, Fannon, Prestes, Marighella, Guevara, Hoxha, X, Hampton, Kim, etc - são homens que deixaram marcas e presenças profundas nas pessoas. É sobre isso que o Galo fala e os historiadores não conseguiram captar (muito por conta da formação em história), isso é uma coisa da filosofia. Para o Galo é esse tipo de marca, por isso ele tenta falar de estética, porque é um tipo de presença que mobiliza, que faz você querer lutar e que te faz continuar em frente.

Aí tem a questão do personalismo. Pedro Ivo já criticou muito essa postura de dizer que os outros tem gado e só você não tem, isso por si só é gerar também gado que acha que não é gado. Me permita ir mais longe : é impossível evitar o personalismo e a idolatria.

Isso é uma coisa da nossa cultura, reproduzido por conta da forma que a gente vive. Nós só vamos mudar isso quando a gente conseguir mudar a forma de produção da vida.

É importante nós termos ciência disso. Mais importante, é saber isso ao nosso favor. De forma intencional ou não, todo movimento popular de uma forma ou de outra teve idolatria. É muito o que o Galo queria falar, isso deixa uma marca, faz você sonhar com aquilo, você imaginar esse socialismo e isso precisa também vir de uma militância no seio do povo, junto das pessoas, ocupando espaços, construindo em conjunto.

Por isso ele sugeriu que o Ian fosse morar na periferia de São Paulo. As próprias pessoas vão trazer para o Ian as pautas, coisas que elas querem saber, mensagens que elas querem que ele espalhe no seu canal. Dentro da favela ele pode ser uma megafone da voz da comunidade. Como isso dá muita abertura para aquela comunicação se expandir, por que não fazer programas de rádio locais, transmitir as lives nas TVs dos bares(é tão barato você por um aparelho na TV que pegue uma Twitch), trazer gente do bairro para conversar na live ?

A argumentação do Ian de que é impossível emular a favela para falar com a favela, ele disse que o favelado teria que ele mesmo produzir o conteúdo. Isso é válido de se apontar. Ele continua dizendo que as pessoas mais pobres tem dificuldade de ficar fazendo conteúdo na internet por conta dos custos.

Isso foi uma coisa que passou, mas o Galo poderia argumentar que seria interessante criar um espaço de criação de conteúdo, para essas pessoas que querem trabalhar com isso conseguirem fazer isso. Por isso a ideia de ocupação é tão importante. É sobre estética, não no sentido burguês.

Não se trata de aparência meramente. É muito um tipo de imaginação, uma construção de futuro. Nós mesmos, eu me incluo nessa, não somos os socialistas do futuro, se a gente com toda nossa radicalidade fosse transportado para um país socialista do futuro, nós seríamos considerados ultrapassados. Mas a gente pode inspirar, através do que a gente fala, como a gente fala, do que a gente faz.

É a nossa relação dos filhos em relação aos pais. Eles são humanos, são cheios de defeitos e problemas, o que marca os filhos é o exemplo, o cuidado, o conselho. 

A esquerda brasileira vem desde os anos 60 vacilando exatamente nesse ponto. Isso a esquerda "anti-Stalin" e os marxistas-leninistas. Quem tem memória, quem vê, quem sente, no sentido mais prático possível que existe algum socialismo por aí ? Muitas vezes, a grande preocupação de estar certo, de ter uma causa justa, de tentar reinventar a roda - abandonou exatamente a parte do afeto, do exemplo, da camaradagem, da ocupação, da organização.