Qual é o efeito político do realismo-capitalista do PT ?

Por mais que você não goste de sua aparência, afirme-se bonito.

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A filosofia é uma merda como disciplina. O principal motivo disso é que o filósofo não parece se importar tanto com o mundo material. Muitas vezes, eles trabalham ideias, conceitos, sem trabalhar muito bem as consequências sociais, históricas, políticas, etc.
 
Veja, isso não é tanto uma questão de Fisher em si, já que no meu ponto de vista, ao falar sobre mídia (e mídia como sendo parte da nossa cultura contemporânea), ele está fazendo justamente isso que eu digo que falta na maioria dos filósofos ocidentais.

De certa maneira, Fisher faz até Zizek ser palatável, porque ele acrescenta sempre essa parte material no seu texto, coisa que Zizek nem sempre está tão preocupado em fazer, como bom hegeliano pouco importa falar algo coeso, desde que soe bonito para as suas palestras.

Muito por conta do discurso do Gaiofato, do Jones em certa medida e da Soberana, é relativamente comum ouvir falar sobre realismo capitalista. A gente consegue discutir como isso é o neoliberalismo em si, como isso pauta o debate dos liberais, o debate dos que a gente chama de reformistas (que na prática nem isso são), etc - mas existe uma certa dificuldade de olhar o efeito que esse realismo capitalista tem na própria esquerda radical.

No sentido de que, pouco se discute a própria função que o chamado “campo democrático, composto por PT, PSOL, PSB, PCdoB e aliados na direita como o próprio PMDB, PSDB, etc (já que a conciliação muitas vezes chega até no PL), tem dentro do horizonte político brasileiro. Como isso influencia partidos menores que disputam espaço na esquerda com esse “campo democrático”.

Veja o “campo democrático” não são só os partidos, existe uma hegemonia em sindicatos, DCEs, quadros do funcionalismo público, da burocracia do Estado, dos movimentos sociais, das escolas, etc, que compõem esse campo.

Por isso, quando a gente fala em petismo, muitas vezes as pessoas não têm noção do tamanho que ele tem. Isso em si, é o que coloca o PT, mesmo com todas as suas contradições (e contra a vontade do próprio partido parece) numa posição de liderança nacional de esquerda.

Um exemplo, se você tem um sindicato, só de poder conversar com a CUT isso te dá uma força política tremenda. Só para você ter uma noção, a informação é do site da CUT : 

“Presente em todos os ramos de atividade econômica do país, a CUT se consolida como a maior central sindical do Brasil, da América Latina e a 5ª maior do mundo, com 3. 806 entidades filiadas, 7.847.077 trabalhadoras e trabalhadores associados e 23.981.044 trabalhadoras e trabalhadores na base.” Breve histórico. Disponível em: <https://www.cut.org.br/conteudo/breve-historico>. Acesso em: 8 mar. 2024.

Puta merda, não ? Olha o tamanho dessa organização. O mesmo vale para o MST:

“O Movimento Sem Terra está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país. No total, são cerca de 450 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais. ”Quem Somos. Disponível em: <https://mst.org.br/quem-somos/>. Acesso em: 8 mar. 2024.

E isso porque eu não fui atrás de olhar as outras organizações que são aliadas, ou relacionadas com o “campo democrático”, nem falei das universidades, dos institutos, das editoras, dos jornais, sindicatos, movimento estudantil, etc.

Consegue achar o Brasil ?

Eu não estou dizendo que a CUT e o MST são perfeitos, que são feitos de ouro ou algo do tipo, tem muitas contradições e a gente achando bonito ou não, eles tem uma grande influência na política nacional, seja pro bem ou pro mal. O Brasil é um dos maiores países do planeta, tem estados que têm tamanhos de países, cidades com populações de países inteiros, uma terra vasta tanto no litoral como no seu interior, com uma variedade de climas e de geografias, com uma riqueza cultural tremenda - qualquer coisinha que você for organizar de forma mais ampla, é preciso de muita gente.

Pensa, qualquer revolta popular no Brasil não precisava de tanta gente quanto agora, não só a população cresceu muito, como o aparato de “pacificar” usando o termo de Duque de Caxias, se tornou mais poderoso e eficaz.

POV : você foi visitar Santa Catarina.

Então assim, mesmo que a gente queira jogar na lata do lixo o “campo democrático”, o que a gente consegue fazer sem eles ? Só para dar um contexto : Florianópolis tem, no máximo, 4 vereanças de esquerda (1 do PT e 4 do PSOL). Aí você “ultra-masterblaster” que com certeza é mais radical que o próprio Lênin, vai deixar de fazer política com as únicas candidaturas de esquerda de uma cidade dominada pelo fascismo que é Florianópolis ?

Não estou dizendo que a gente vai deixar de fazer o nosso programa, mas que veja, para você fazer sua militância com alguma segurança, com alguma capacidade disso impactar a política, você precisa compor com o “campo democrático”, seja ele tendo as contradições que for, seja ele sendo bem liberal, seja ele sendo muito recuado com a força que tem. Pensa na importância que no congresso nacional os deputados do PSOL, do PT, do PCdoB e cia, o quanto que isso não ajuda a segurar o nosso congresso historicamente reacionário ?

O problema do “campo democrático”, ele com todos os seus defeitos, tem força na população porque ele fez coisas, você vê o impacto das políticas que eles fazem, mesmo com toda aversão à organização que eles possuem. Existe bolsa família, existe prouni, existe mais escolas e uma série de políticas públicas por conta deles. E isso vale mesmo para a direita, a gente sabe do seu caráter reacionário, mas por exemplo, prefeito ACM Neto fazia obras sociais em comunidades carentes, as pessoas lembram do que ele fez, sendo ele o monstro que for - existe uma questão prática, ele pode ser o demônio e a gente o próprio anjo Gabriel, a questão é que o demônio fez algo.

Deus pode até existir, mas é o diabo que me alimenta, fica difícil rezar na igreja.

Note o seguinte : nós que somos pobres, não temos tempo pra ficar escolhendo político perfeito, ou de ficar esperando emprego certo, ou sei lá, a questão é que a gente precisa pagar as contas, precisa sobreviver, se a igreja escrota, o político corno fdp da direita, etc, vai ajudar, a gente vai pegar a ajuda, sabendo que está basicamente vendendo a alma para o diabo no processo. Você por acaso tem escolha de fazer empréstimo num “banco bonzinho” quando precisa ?

O que não falta é gente falando que essas coisas são feias, ruins, imorais, etc, mas ajuda a sobreviver, não é mesmo ? Esse elemento de realismo que compõe o neoliberalismo (assim como o capitalismo) que precisa ser compreendido de vez. O capitalismo é um sistema “imperfeito”, mas “funciona”, certo ?

Literalmente viver no inferno, facilita muito acreditar no diabo. Por isso é tão fácil mobilizar as pessoas contra minorias neste país, o termo bode expiatório existe e se aplica muito bem aqui. Criar espantalhos “funciona” como elemento de mobilização popular, por isso o fascismo é tão socializado no neoliberalismo.

É isso que faz as pessoas irem trabalhar por aplicativo, é isso que faz as pessoas se prostituir na rua, em bares e na internet, isso que faz as pessoas pegarem empréstimo com agiota, é isso que faz pessoas irem vender droga (ou se drogarem), é isso que ajuda a recrutar a polícia e a população para as milícias e crime organizado, isso que abre espaço para tantos jogos de aposta, etc - está todo mundo desesperado e não existe uma opção alternativa.

Isso por um lado. Veja que o problema não é o “campo democrático” ter força, o problema é a gente ser fraco e depender deles politicamente e a política deles, muitas vezes, ser completamente contrária ao que a gente propõe. O liberalismo deles acaba limitando a nossa ação política. Se a gente quer mobilizar, eles já apostam num eleitoralismo liberal, se a gente quer mudanças mais estruturais, eles já se preocupam em conciliar. E veja, a questão do “campo democrático” é que com toda a sua força, ele não oferece essa alternativa, justamente porque quando eles vão fazer política, e isso é muito claro em críticas gerais que se fazem à eles, é a mesma coisa da direita, só que bem vestida e “preocupada” com o social.

A questão é que eles podem fazer as coisas( “funciona” capiche), e a gente pode discutir os limites do que eles podem fazer na prática, mas a questão é que mesmo podendo, não o fazem por questões ideológicas. Tem uma série de coisas que o governo poderia fazer, dentro das ordenações burguesas, inclusive dentro da tradição liberal, mas não faz exatamente porque é conservador demais.

A ideia do PPP (parceria público-privada), existe principalmente por uma perspectiva de como o Estado deve operar. Por exemplo, existe PPP para creche, a razão de existir esse tipo de parceria é porque supostamente o Estado não consegue suprir essa necessidade e o mercado supostamente teria essa capacidade. Mas veja, se o Estado não consegue suprir a quantidade necessária de creches é exatamente porque falta investimento público, existe déficit de professores, de unidades, etc. Isso Jones até fala, que a raiz disso é exatamente porque se tem essa noção que o “Estado não pode gastar”, ou que “O Estado não é eficiente”, entre outros dogmas liberais.


Quando você contrata por PPP, o trabalho é terceirizado, muito mais difícil de você organizar os trabalhadores, existe aí também de que essas pessoas não são nem CLT em muitos casos. Ou seja, se você tem um sindicato de professores, ali já é um lugar que você não vai ter muita influência. Contratar pessoas por MEI, não tem só a função de pagar menos, mas também uma função ideológica, de tirar do trabalhador sua identidade de trabalhador e transformar ele num tipo pseudo pequeno-burguês, já que não tem nenhum capital e vende a sua força de trabalho como trabalhador mesmo.

Pensa na eleição : existe um elemento muito elementar é que você vota em quem pode fazer o que você precisa, seja o que for. O cara que vota no PL porque ele quer acabar com as pessoas trans, ele acredita mesmo e tem muitos elementos para ele olhar para isso e saber que vai ser feito. Existe poder político o suficiente para executar essa política.

Agora, as pessoas votam no “campo democrático” por razões de que eles podem executar muito das políticas que dizem que vão fazer. Veja, o Lula por exemplo, é o cara com coordenação política para fazer algo como o Bolsa família, eu realmente duvido que as pessoas olhem para a UP, PSTU, PCB e cia, e pensam que eles conseguem fazer essa política pública. Você sabe que no processo o PT vai namorar o PMDB, mas o PT vai fazer a política pública que prometeu - é por isso que as pessoas perdoam tanto o PT.

Veja, é nisso que a gente sempre bate a cara quando precisa fazer algum protesto, algum movimento mais amplo, alguma ocupação, etc. Se defende, por exemplo, o fim desse “novo ensino médio”, existe inclusive um consenso popular que isso é uma merda, mas a gente esbarra exatamente no Camilo Santana do PT, ligado a fundação Lemann, mas não só, como eu disse, o “campo democrático” não são apenas os partidos - você tem sindicatos, movimentos estudantis, que na hora H de lutar contra isso, simplesmente vão estar desmobilizados.

É importante de um lado denunciar isso, mas ao mesmo tempo, não é melhor tentar alguma coisa diferente ? Se a gente sabe que em muita coisa não pode contar com eles e que muitas vezes até o contrário, eles vão atuar como nossos inimigos, não seria o caso de sei lá, tentar construir o nosso poder popular para dobrar a vontade deles ?

E assim, a gente pode continuar atuando com eles quando necessário, quando conveniente, o meu problema é que existe essa dependência, para gente fazer as coisas que a gente propõe fazer, tudo a gente depende do humor de alguém do “campo democrático”.

O prouni deve ter nascido assim : algum militante mais ferrenho convenceu o então ministro da educação na época, Haddad, de que a gente deveria investir nas universidades, aí Haddad como gosta de ler, achou uma ideia excelente. No dia seguinte, ele bateu o dedinho do pé na quina da cama e resolveu transformar em um programa de investimento de educação privada. Assim nasceu o prouni, “funciona” bem né ?