Matrix como uma condição existencial

O filme Matrix 4 vai sair no cinema com Keanu Reeves e a diretora Lana Wachowski vai ser novamente a diretora. A franquia em si não é tão aclamada quanto o primeiro filme, que é um clássico do cinema.
 
(Eu escrevi parte do texto antes do filme sair. O filme 4 existe basicamente para deixar BEM CLARO QUE É UMA ANALOGIA TRANS DE ESQUERDA RADICAL).
 
Existem algumas interpretações sobre o filme que seguem as seguintes linhas : a) desconsideram os outros filmes da franquia; b) se interessam mais para a parábola da pílula vermelha/azul; c) interpretam o filme como uma metáfora para a transexualidade.

Há alguns problemas com essas interpretações. (a) desconsidera que dos filmes clássicos da época (Blade Runner, Mad Max, Clube da Luta, etc), Matrix é um dos poucos em ter uma franquia. Mad Max tem seus diversos filmes, mas é um filme diferente. Não é como se o Mad Max 2 acrescentasse ao primeiro e assim por diante. Matrix por outro lado, busca criar uma narrativa e as sequências são importantes mesmo para o primeiro filme.

(b) De certa maneira diz que o filme se trata da parábola da pílula vermelha/azul. Não gosto dessa narrativa, ainda que você possa escolher entre ficar na Matrix ou sair dela e lutar contra ela, o próprio filme nos mostra que a dicotomia entre real vs falso é frágil e que há outras narrativas em jogo. As disposições de poder também são bem diferentes do que nós imaginamos. Se a gente considerar que o filme é menos profundo do que pensávamos, talvez ele de fato seja apenas essa parábola. Essa é uma consideração se estamos desconsiderando a profundidade do filme.

Por conta das irmãs Wachowski terem se revelado transexuais, essa se tornou uma interpretação "original" da franquia : metáfora para a transexualidade. (c) dentre as outras é a mais abrangente e que é capaz de responder mais perguntas. A própria parábola da pílula tem outro sentido, já que o tratamento hormonal usa pílulas. A pílula azul não seria necessariamente um remédio, mas a vida de homem. Ser homem é em grande parte ignorar a própria saúde para ser "macho de verdade". Há uma fase que nós trans passamos que é tentar negar que somos trans, nessa fase que viramos machistas, fascistas e etc - como uma tentativa de viver como homem, mas não só isso, se provar como tal.

Há algumas meninas que são de fato istas em várias coisas, mas muitas que foram, foi através dessa tentativa de se encaixar (e falhando, o que não impede algumas meninas virarem femcel).

Não gosto muito dessa interpretação porque ela não explica a ação do filme, a violência, inclusive a própria mudança do agente Smith (O próprio Reset da Matrix fica sem sentido e o porquê da distopia neoliberal dos anos 90 também).

Diferente dessas interpretações, prefiro olhar a história de Matrix como uma condição existencial da nossa época. Também vou considerar filmes como Brazil, Blade Runner, Mad Max, Pulp Fiction, Natural Born Killers, They Live ,Clube da Luta, Her e O procurado. Nesse texto vou tentar com uma série de pequenos textos achar alguma interpretação interessante e nova.



1 - Trabalhador neoliberal, empresário de si mesmo.

Anos 80 e 90 foram décadas que tiveram papel central na nossa mudança de perspectiva econômica, política e social. A perspectiva neoliberal ganhava o mundo, Hayek e Friedman eram os ideólogos à frente, com Thatcher e Reagan levando o projeto a sério na política.

A TV ganhava cada vez mais espaço, espalhando mais ainda essa ideologia. Em 91 o muro de Berlin caiu e o neoliberalismo se tornou de vez o único projeto de vida para todos. Havia apenas essa vida neoliberal de indivíduos competindo no mercado. É nesse universo que grande parte da história (do filme) se passa.

Viver passou a ser trabalhar para pagar dívidas, tentar uma promoção, ou abrir uma empresa de sucesso. Com as “flexibilizações” da carteira de trabalho e o aumento de empresários individuais, o trabalhador perdeu o horário para ter que trabalhar - trabalhamos o tempo todo para conseguir ter espaço na competição do capitalismo.

Nós nos afundamos com tanta força nessa forma de vida, que para nós vem como uma grande surpresa quando descobrimos que há outras formas de viver.

A cultura do produzir para o produzir é extremamente alienante. Lutar para completar uma meta acima da meta é algo que te afasta dos jornais, dos livros, dos estudos e te aproxima da mídia para alienar. Quando você chega em casa você não quer ouvir o Willian Bonner, você quer ver uma palestra do Karnal. Ou seja, é quase uma alienação dentro da alienação.

Esse drama que o nosso personagem do Clube da Luta sofre. Ele chega em casa e passa a noite toda assistindo propagandas de novos móveis. Esse consumo é o que preenche a existência dele. Tudo parece o comercial da TV e agora das mensagens íntimas que as companhias nos enviam. Em Her até a relação de namoro que ele tem é uma assinatura.

Tudo parece falso porque é falso. “Uma cópia de uma cópia de uma cópia”.

Já pensou se a gente tivesse IAs por aí ? Ah é…


2 - A pílula vermelha.

Marx viu o início do capitalismo que conhecemos. Ele viu ele surgir, estudou sua história. Nós temos avós e pais que já nasceram dentro do capitalismo, nós crescemos no capitalismo, então só há capitalismo.

É muito difícil para grande maioria das pessoas terem essa perspectiva. De que há história e há mundos diferentes, mesmo nos dias de hoje. A escola pública não consegue ensinar historiografia, mas fatos históricos isolados e a internet contribui bastante para essa deshistoricização  da história. A vida de Leandro Narloch ao escrever seu livro Guia politicamente incorreto não poderia ser mais fácil : “Já que ninguém sabe historiografia, eu, jornalista, posso jogar fato histórico fora de contexto contra outro fato histórico.”

Quando você acessa a internet sem saber de nada, você se depara com um mar de narrativas. Contadas sem contexto por pessoas sem rosto e que você nem sabe se são verdadeiras ou não.

Ficamos imersos diante de conhecimentos que não nos parecem verdade e de histórias sem historiografias. Logo, quando alguém nos apresenta uma verdade diferente da que vivemos a vida toda, ficamos eufóricos. A pílula vermelha aqui aparece como uma nova verdade mais verdadeira que as demais, uma perspectiva diferente da que a que todos seguem.

É interessante perceber que essa percepção já é o senso comum. Não há um coach, um youtuber, um político, um escritor, um artista, que não te diga que ele fala a verdade. Que ele te diz coisas que ninguém vai dizer.

Dos Incels a políticos conservadores, dos anarquistas ilegalistas até os social democratas, todos tem uma verdade oculta para revelar. O problema da pílula vermelha e da azul é que ambas possuem o mesmo valor, como é revelado em um dos filmes. A própria resistência era uma parte da Matrix (o que é o PT senão isso não é mesmo ? Uma simulação de resistência ao fascismo).

Não há menos verdade na pílula azul do que há na vermelha.

O problema é que uma verdade pode ter mais valor que a outra conforme alguma realidade que possamos viver ou conforme uma comunidade que possamos fazer parte. Nós sabemos que os negros não tem nenhuma diferença biológica dos homens brancos e que não há sentido em discriminar os negros por serem negros, por conta de uma ideia de superiodade branca que não existe.

Ainda assim, há pessoas que acreditam nisso. Talvez, o que precisamos notar no racismo é que não se trata meramente de uma ideologia ou de uma crença justificada em alguma suposta evidência ou de um preconceito simplesmente, mas que há muitas vantagens em ser racista para muita gente - é uma relação de poder, o racismo sempre tem um caráter político.

O que os supremacistas brancos resgatam é o fato dos brancos terem privilégios na sociedade por serem brancos. Diante de uma sociedade neoliberal que apenas vive em crises constantes, resgatar a comunidade branca e tentar lutar pelos privilégios brancos parece uma ideia muito atrativa. Se você também considerar que essa pauta gera muito dinheiro para os adeptos, é um outro motivo para um homem branco querer resgatar o passado racista. O identitarismo neofascista é uma resposta ao isolamento neoliberal.

Isso vale para muita coisa que a direita faz usando essa metáfora da pílula. É lucrativo, vantajoso e uma resposta ao isolamento neoliberal, ser racista, fascista, incel, anarcocapitalista e etc.

Uma coisa importante de lembrar é que Neo não só saiu da Matrix depois de tomar a pílula, mas também arrumou uma comunidade. Isso foi mais importante do que sair da Matrix em si (a grande diferença entre uma pílula e outra é basicamente isso).

O que esse caso dos supremacistas brancos nos revelam é que nós temos uma sociedade que favorece viver coletivamente, porém a sociedade como um todo vive em retalhos. Há os indivíduos e há os grupos - ou melhor dizendo, os pequenos empreendimentos. Querendo ou não, aderir a uma comunidade pela identidade é algo lucrativo.

Se todo mundo pudesse ser a Coca-cola para vender refrigerante, todos nós seríamos Coca - como os direitos de imagem não permitem, precisamos ser brancos, amarelos, negros, rosas e etc. A identidade serve como uma commodity.

A ideia de uma verdade oculta é algo que dá dinheiro, tanto que todo Coach vende uma verdade por 500 reais no mínimo.

A nossa dúvida agora cai diante de Morpheus : será que ele não é um vendedor da indústria farmacêutica ? Será que esse cara que desafia o sistema não está tentando me vender outra Matrix ?

Dentre tantas narrativas de verdade, quais devo usar ?

Eu acho que essa confusão, muito bem expressa no tipo de teoria pós-moderna e na própria discussão que o filme propõe, mostra a confusão e a dificuldade de sair do castelo do vampiro. A nossa conexão com a internet não nos libertou como queríamos, muito pelo contrário, nunca estivemos tão mensurados, vigiados e presos.

Inclusive abraço para os meninos do monitoramento.

3 -  A alienação da mídia

“A mídia manipula” - dizem por aí. Eu não sou adepta dessa tese. Nós precisamos entender que a mídia é uma empresa de mercado que vende informação. Não faz nenhum sentido vender informações falsas, a informação dela perde valor.

Fora que a informação cada vez mais é algo descentralizado - se um jornal mente, logo é desmentido por outro ou mesmo por evidências descobertas pelos próprios espectadores.

Mas, os jornais de certa maneira, não possuem tanta relevância para contar uma verdade. Os jornais são uma pequena peça e por isso hoje eles podem ser de certa maneira mais ousados com as suas observações (ou pelo menos deveriam ser).

O tipo de alienação que vou comentar é o da indústria do entretenimento. É nela que moram nossas grandes narrativas e é nela que nós nos entregamos sem nenhuma defesa.

O filme They Live, recomendado por Zizek, se trata de um trabalhador da cidade, sem carteira assinada, que mora em uma construção civil que adquire óculos que mostram a verdadeira realidade das mensagens publicitárias.

Quase como se os óculos o ensinassem a interpretar o mundo de uma maneira diferente. Em uma propaganda de bebidas, sem os óculos, diz algo como “refrescante” - com eles diz “trabalhe mais um pouco”. Ou seja, os produtos servem para nos alienar da realidade à nossa volta.

Em momento algum, nas diversas interpretações sobre esse filme nós nos perguntamos : Por que ele precisa do óculos para enxergar a ideologia ? O que aconteceu com a capacidade crítica das pessoas ? E por que o que o óculos mostra tem algum grau de verdade maior ?

Talvez aqui, uma pergunta melhor seria : e se os óculos forem mais um produto ? Se as nossas novas realidades são na verdade uma espécie de produto ?

Tanto em O procurado, como em Matrix, podemos perguntar se há interesses comerciais nas “alternativas”. É uma desconfiança diferente dos mestres da suspeita (Nietzsche, Marx e Freud) - é uma espécie de pergunta que só poderia ser feita durante o neoliberalismo.

A nossa desconfiança não é mais se Deus pode existir, mas se esse Deus pode nos cobrar uma assinatura por cada reza. Orar ainda é grátis ? Nós ainda podemos tomar Sol ou é necessária uma taxa para tal ?

As drogas existem essencialmente para isso. Do cigarro e da bebida, para o ópio e a cocaína há uma jornada tentando escapar da vida e tentando suportar as dificuldades que aparecem. Ninguém hoje se droga por mágica, existe um bom motivo e são as condições de vida do neoliberalismo. Inclusive, eu to sabendo que você anda tomando remédio de dor de cabeça, isso aí vicia também.

Já ouviu a frase “O Brasil me faz beber” ? Essa é a mais pura verdade. Não é nada fácil suportar a vida no Brasil, cada vez mais a nossa qualidade de vida piora e nós nos vemos numa situação impossível de lidar com isso.

O entretenimento é uma outra maneira de fugir. Mas aqui não estamos falando de arte propriamente, mas de entretenimento que se fecha em si. Muita gente daria o exemplo das novelas. Eu já discordaria, as novelas muitas vezes levantam questões importantes para a sociedade. Aqui quando falo de entretenimento falo de coisas como videogames, streamers, youtubers, etc - desde que engaje a pessoa numa espécie de realidade diferente.

É uma espécie de gaiola do prazer. Você não vai assistir o que não te satisfaz, você sempre vai ver o que te agrada. Em si, não há nada de errado nisso, mas a grande questão é que a sua libido, no sentido de energia mesmo, é direcionada para manter o status quo.

O algoritmo é otimizado para sempre te agradar com um propósito muito simples de te fazer um consumidor.

Não é que você é manipulado, é mais uma questão de que o propósito nunca foi te libertar de nada. A ideia é manter a máquina de produção quente.

4 - É realmente útil considerar a possibilidade de viver em uma simulação ?

Nós conseguimos provar que vivemos em uma simulação sem o comprometimento das evidências que encontramos ? Digo isso porque é muito fácil para quem defende essa ideia afirmar que a falta de evidências é uma evidência de que a simulação existe, pois nesse caso, se trata de uma simulação perfeita.

Qualquer pequena evidência, menor que seja, ganha uma proporção muito maior. Qualquer evento incompreendido pode ser considerado um bug na programação desta simulação. Um fenômeno desconhecido que em outros tempos chamamos de Deus, hoje nós dizemos que se trata de uma simulação.

Da mesma maneira que não conseguimos provar e não há nenhuma utilidade em saber se Deus ou deuses existem ou não (e não é por isso que somos religiosos), podemos dizer que saber se vivemos em uma simulação ou não, é algo pouco útil.

A religião pelo menos serve como uma maneira de conectar uma sociedade. A ideia de simulação cria na nossa sociedade pequenos grupos que acreditam serem os detentores da verdade.

A fé religiosa pelo menos tem uma organização social e o papel de profeta é muito mais restrito. Enquanto na teoria da simulação, todo mundo é um potencial profeta, já que ninguém quer ser o NPC.

Enquanto a religião tenta ser universal, esses pequenos grupos são isolados e não estão interessados em incluir outras pessoas. A questão aqui é você observar que se você vive em uma sociedade sem historiografia, sem compreensão de causas e efeitos, incapaz de compreender qualquer coisa vinda das narrativas marxistas (que são as que envolvem melhor o mundo atual), então sobra a conspiração.

É isso onde eu acredito que a narrativa do filme traz mais malefícios do que benefícios. O filme realmente, funciona muito melhor como uma metáfora trans, agora como tratado filosófico, pode criar problemas de conspiracionismo, paranóia.

É isso, espero que tenham gostado. 💔

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