DOC 002 - CAROLINE SARDÁ: SAÚDE MENTAL, QUANTIDADE E QUALIDADE DO CONTEÚDO DIGITAL

(Recomendo muito que assistam o vídeo, ela dá alguns insights muito interessantes sobre o assunto e eu acho que vale muito a pena ver, deixei lá no final da postagem)

Se tem um gênero de vídeo que sempre vai ter minha atenção são esses vídeos dos criadores terminando um canal ou falando sobre uma mudança editorial. Isso porque acho que é importante a gente falar sobre o processo de produção de vídeos, sobre a organização do trabalho envolvida, todo processo criativo, etc.

É como se por um momento, o criador se tornasse um trabalhador falando de suas condições de trabalho. Por que eu digo isso ? (Não é o caso da Sardá) é que muitas vezes o criador de conteúdo acha que é empresário de si mesmo.


Ele não se vê como um trabalhador precarizado. Ele se vê como um pequeno CEO. Eu já falei exaustivamente dessa ideologia no neoliberalismo. Não é o caso aqui, Sardá sabe que é uma trabalhadora.


Então, quero falar sobre essa coisa de produzir o que é "popular" (que muitas vezes é só manipulação do algoritmo), a quantidade de vídeos e a questão da qualidade desse conteúdo.


Aqui tem um elemento muito importante que é Sardá, por conta da pandemia perdeu o emprego, começou a fazer freelance, enquanto mandava currículos e começou a fazer conteúdos para a internet.


Qual é o principal mito que nos dizem sobre a internet ? Que as pessoas fazem seus vídeos, fazem os conteúdos, etc, porque querem ganhar dinheiro e fama - no palavreado francês, para aparecer. Isso é uma meia verdade, o fato é que as pessoas tentam produzir conteúdos porque elas vivem num mundo que faz tudo virar pago, transformando o dinheiro em algo tão importante quanto a água ou o ar. É claro que é para ganhar dinheiro, não para aparecer. Se ela não precisasse, não faria. Fama é uma coisa que não é necessariamente positiva, ela pode atrair, por exemplo, gente te ameaçando de morte.


Elas têm uma dificuldade tremenda de conseguir fazer uma renda de outras formas, então elas tentam de tudo e até por pura sorte, elas conseguem fazer alguma renda através da produção de conteúdo na internet.


(Fora que há um incentivo para o usuário também se tornar produtor de conteúdo. Nós vivemos já numa cultura que naturaliza postar coisas o tempo todo e sobre tudo)


Sardá mostra uma realidade muito mais generalizada deste tipo de trabalho. As pessoas tentam esse tipo de trabalho não porque querem ser o próximo pewdiepie, mas porque muitas vezes é a opção que elas têm. (Ainda que fosse inspirada em alguém, a questão é que a necessidade fala muito mais alto)


O fato dela gostar de fazer o conteúdo que ela produz não tira a questão da precarização de cena. As pessoas gostarem de fazer uma coisa, e aqui não consigo não ser sarcástica, é algo normal. Muita gente gosta de dirigir, nem por isso se justifica o que a Uber faz com os motoristas.


Agora ela ter que aguentar debate e react de reacionário, simplesmente porque isso dava muita visibilidade para o conteúdo dela, nós entramos nos meandros de como essas plataformas operam.


Vamos esquecer que estamos no capitalismo por um instante. Não estou dizendo que o mundo magicamente melhoraria, mas que resolvemos boa parte dos nossos problemas no socialismo.


Se você pensa numa plataforma dessas, o que a gente compartilha sem muita pretensão de ser visto ? Vídeos que a gente gosta, filmes, séries, falaríamos de assuntos que gostamos com mais frequência, etc.


O lucro não seria o grande foco dessas plataformas, teríamos outras preocupações.


No deserto do real, isto é, o capitalismo, produzir conteúdo numa plataforma é otimizar um produto para o lucro. Existem fazendas de conteúdo produzindo uma quantidade gigantesca de vídeos com intuito único de fazer o máximo de visualizações possíveis.


Conteúdos extremistas funcionam por uma razão muito simples : eles vendem uma identidade, são fáceis de assimilar (a direita é o status quo) e chega a ser naturalizado, falar um monte de merda é extremamente fácil, dá para fazer em escala.


React é fácil de fazer, não há necessidade de um computador potente, quando comparamos com canais de gameplay, não é preciso muita pesquisa (em alguns casos), e volto a repetir, é fácil de fazer. É como ver um vídeo com alguém. Numa sociedade extremamente isolada, sentar com os amigos para ver um vídeo é uma sensação muito gostosa.


(Existe uma quantidade enorme de conteúdos que tentam preencher esse vácuo de uma comunidade ou de socialização. ASMR, live dessas meninas seminuas da Twitch, live de gameplay, react, etc.)


E a gente sabe que já é algo extremamente saturado e tal, mas entrega view, entrega like, entrega engajamento. É fácil de fazer, portanto consegue competir com canais maiores e com as fazendas de conteúdo. A plataforma é otimizada para maximizar o tempo de consumo do usuário. 


Esse é o ponto central que eu quero cutucar : pensemos em um jogo. Importa a história, o roleplay, o conteúdo ? Se você pensa estritamente na estratégia otimizada para vencer, nada disso interessa. Os speedruns não tem limite em descobrir algum exploit para ganhar o jogo da forma mais rápida possível e eficaz. Isso é o que se chama de instrumental play.


A criação de conteúdo como um jogo, valoriza muito mais spam de fazenda de conteúdo, vídeo bizarro para criança, etc, e claro vídeos da extrema direita, porque isso alcança seu objetivo final da forma mais rápida e eficaz. Grosso modo, muito mais de 100 vídeos spam do que uma resenha de um livro ou algo assim.


Numa lógica realmente de jogo, cria uma espécie de meta e obriga quem não repete a melhor estratégia de fazer a mesma coisa. Ou seja, o fato das redes sociais estarem lotadas de conteúdo extremista, de pouca qualidade, de reacts, etc (porque elas promovem isso) - obriga quem não está fazendo isso, reproduzir pelo menos alguma dessas estratégias para sequer conseguir alguma possibilidade de visibilidade.


(Você sempre acha umas exceções que servem para confirmar o que acontece com mais frequência. Numa escala de quantas Caroline Sardá, nós temos quantas Sarah Winter ?)


Para uma criadora como a Sardá que deseja alcançar o maior público possível e etc (com um conteúdo contra-hegemônico), por mais que ela quisesse compartilhar coisas que ela gosta e só, por conta da sua necessidade material de sobrevivência, ela precisa seguir o que é o mais otimizado, que muita gente está fazendo e está funcionando : os reacts e os debates, principalmente a ideia de "treta", de refutação do debate, que é algo que além de muita visualização, dá muito engajamento.


Tanto o debate, como o react (que é popular por outras questões também), criam uma dinâmica de discussão nos comentários, em compartilhamentos, em canais de corte, etc. Uma coisa é você ser o lado da extrema-direita, que até consegue cargo público falando merda, ganha uma graninha de think tank e as porra, outra coisa completamente diferente é ser uma feminista, com pouco financiamento, numa condição precarizada e ainda tendo que aguentar um bando de reaça falando merda em debate e em react.


É algo mentalmente pesado, faz você olhar para sua vida e ficar triste. Ela também disse que sofreu uma série de ameaças, isso é Santa Catarina, não esperava menos. 


Agora com uma casa nova em outro estado e com um salário CLT, ela pode fazer vídeos como uma coisa que ela gosta de fazer no tempo livre. Só o fato de ter uma segurança material, permite que ela dê mais tempo, fique mais off e possa produzir um material de mais qualidade. (Sardá se você ler isso aqui algum dia, vai passear no centro de São Paulo ali na República, é muito bonito. Já fui aí desempregada, me ajudou a me sentir melhor)


A quantidade de vídeos que as plataformas exigem de seus criadores é desumana e para conseguir acompanhar, é necessário ter ou muito dinheiro e recursos, ou é preciso fazer um conteúdo mais reprodutível possível. Ou seja, você sempre vai ter muita coisa de baixa qualidade, ou algum think tank de extrema-direita fazendo vídeos o tempo todo.


É interessante porque é um processo, não raro, muito solitário, cheio de etapas e principalmente, muito incerto. Em específico o Youtube é uma plataforma que não tem regras claras de monetização, não entrega com consistência os vídeos, muitas vezes tem problemas que ninguém nem sabe como se resolve. Eu acho que o faz o Tik tok/Kwai muitas vezes inviável, é que enquanto 30k de visualizações seria um número razoável no Youtube, para os padrões de vídeos curtos é muito pouco.


E a gente sabe bem, que mesmo essas plataformas, também não são tão confiáveis assim (nenhuma na verdade, a gente cansa de ver gente que se ferra por conta dessas plataformas). Aí soma isso com desemprego, com pandemia, com precarização, com o individualismo forçado do neoliberalismo e no caso da Sardá, com ameaças, etc - isso cria uma tempestade perfeita para um colapso mental (eu não estou dizendo que ela teve, mas que nesse ritmo ela com certeza teria).


Quando a gente pensa em react, principalmente aqueles que se propõem em rebater informações falsas. Pouco se considera o estado psíquico de quem faz o react. Tem um pressuposto muito simples que é ver como fulano reagiria a determinado conteúdo. As pessoas por uma necessidade de imaginar que existe um outro acredito, querem ver o que alguém pensaria, ou como ele reagiria a determinada coisa. Sabe quando você compartilha alguma coisa com alguém e quer ver como ele reagiria, o que ele pensa ?


(Eu acredito que relações parassociais são inevitáveis. A solidão é algo generalizado, é quase que uma regra a gente achar que fulano de tal canal é um amigo, começar a criar uma preocupação, considerar o que pensa como alguém da família.)


Eu acho que a grande expectativa de parte do público desses comunistas reagindo também é uma questão de querer ver algum atrito, alguma reação mais exagerada, coisas como "olha que absurdo". No Brasil, de uma maneira geral, as pessoas não têm uma visão clara do que é o comunismo.


O comunista para muita gente é o maluco que pinta a unha, é vegano, fala de feminismo para pegar mulher e milita muito no Twitter. Esse estereótipo é o que fica na cabeça de muita gente. Então assim, ninguém espera que essa pessoa seja capaz de gostar de coisas, fazer boas explicações sobre a realidade. Esse comunista hipotético, na verdade é o liberal Faria Limer, essa imagem é só resultado de um anticomunismo já centenário.


Se a gente lembrar o que espalhou Bolsonaro, foi justamente essa quantidade de pessoas compartilhando "Que absurdo!", junto daqueles que apoiavam aquelas ideias.


Uma coisa é você passar metade do vídeo chorando porque Bolsonaro existe, isso não te faz de esquerda, muito menos comunista. A verdade é que muita gente tinha/faz uma oposição meramente gramática contra Bolsonaro. "Ele fala palavrão e é feio" - é muitas vezes a única coisa que algumas pessoas tem a dizer.


O liberal que era chamado pela extrema-direita de comunista safado, adotou para si a alcunha de progressista ou esquerda, porque de verdade, ele não é comunista, é liberal. Se dizer progressista muitas vezes é medo de querer ser confundido com um comunista de verdade, pelo simples fato de não apoiar todas as políticas de um comunista.


A má educação política é tanta que a extrema-direita se denomina de liberal. Quando os comunistas de fato começaram a aparecer, houve de certa forma um grande choque.


Falando da própria Sardá, acredito que a reação de muita gente à ela era "Como assim ela não tá gritando e falando um monte de argumento furado igual a Sarah Winter ? Como assim ela tem argumentos, evidências e sabe explicar o que se propõe a explicar ? E ainda é uma pessoa "normal".


Por que falo dessa questão da "normalidade" ? Assim como a ideia antisemita do judeu narigudo, com um saco de ouro e asa de morcego, a imagem que se espera de uma comunista, de uma feminista, de uma militante política, etc, é uma imagem esteriotipada criada pela extrema-direita.


Comunistas aparecendo simplesmente como "pessoas comuns", "normais", e que "fazem coisas" (Eu só quero comentar, por exemplo, Sr. Gaiofato que gosta de anime, fala de comida, torce pro São Paulo, etc. É interessante porque tem gente que pensa que comunista é ou é um padre franscicano descalço ou um militante maluco esteriotipado do Twitter), respondendo de forma mais séria e bem estruturada ideias malucas da extrema-direita, como um formato de conteúdo, quebra completamente a expectativa de uma sociedade fascistizada.


Enquanto o liberal brincava de ser a "esquerda", era fácil, porque o liberalismo em si é uma piada e é cheio de contradições. Num primeiro momento, o que fez esse conteúdo comunista ir longe foi essa expectativa por algum espetáculo maluco, alguma resposta incoerente e sem sentido; O que fez muita gente ficar e que possibilitou pessoas formarem comunidades, foi na verdade a qualidade dos vídeos, a capacidade de ensinar, de acolher, de desmistificar essa ideia do comunismo para as pessoas. É como João Carvalho aponta, "Os cara vem para para rir e fica porque começa a se identificar, a realidade começa a bater".


É fácil ficar igual o liberal falando no "que absurdo" (tanto que tem gente que até hoje só faz isso), mas num ponto de vista de trabalho educacional é extremamente exaustivo ficar corrigindo marmanjo reaça e desonesto como esses comunistas se propõem a fazer. 


A minha preocupação maior é tudo virar uma moda ou um movimento fraco, sem impacto na vida real. A imobilização em relação à privatização dos presídios no Brasil mostra a nossa dificuldade de coordenação e força política, por mais que muita gente siga, veja e compartilhe esses vídeos desses camaradas.


O caso Sardá é uma amostra de que é necessário organizar a comunicação, tornar o trabalho de mídia mais salubre, só assim nós conseguimos construir uma mídia alternativa de qualidade. É preciso, de alguma forma, superar esse estilo de produção precarizado.


É um assunto que acaba puxando outras questões também. Será que devemos ficar falando sobre tudo sempre ? Será que nós devemos sempre seguir o que o debate liberal soltou como pauta do dia ? Será que a gente está espalhando a nossa narrativa de forma eficaz, como mede isso ?


Enfim, com o tempo vamos descobrindo essas respostas.




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