Cₒₘₒ ₛₑᵣ ᵤₘₐ ⱼₒᵥₑₘ ₚᵣₒₘᵢₛₛₒᵣₐ ?

Desculpa, meu caro leitor, por já começar o meu texto falando como eu me sinto. É difícil, eu sei, é complicado acreditar que as pessoas se sentem mal às vezes. Nesse caso é importante, eu prometo - vai que você se sente igual, não é mesmo ?

Sem spoilers :)


Althusser, um dos poucos franceses que merecem perdão, no seu texto sobre os aparatos ideológicos do Estado afirma que uma das coisas mais importantes para o capitalismo é a sua reprodução - aqui a ideologia tem um papel crucial. Podemos argumentar que a cultura, como um resultado dessas relações com a natureza (eu tô simplificando, vão ler qualquer definição básica de antropologia, é isso que eu tô na cabeça) não é muito diferente.


Se você chegar em qualquer pessoa, digo qualquer pessoa mesmo, e perguntar : você é machista ? Mesmo ela sendo mulher, sendo lgbtqia +, às vezes ela até tem um diploma universitário, ela vai responder que não e que até defende o feminismo (o que eu estou dizendo é que muitas vezes nós mesmos reproduzimos os valores da ideologia dominante). Os homens literalmente vão dizer que são feministas ! A resposta em média vai ser algo que foi escrito por um time de publicitários viciados em cocaína da Faria Lima - “somos a favor da defesa dos direitos da mulher”, “é claro que mulher pode ser CEO”, “o salário da mulher precisa ser igual aos dos homens”.


Na superfície, isso até parece feminismo, dá impressão que todo mundo é socialista. Eu to falando de feminismo, porque mesmo se você olhar a superfície do título do filme e sua sinopse, é essa temática que o filme tende a comentar. Só que isso, se tratando como fenômeno, é regra quando vamos falar de minorias. Quantas vezes não ouvimos que racismo não é uma coisa que tem no Brasil ? O velho mito da democracia racial. Para vocês não deve ser tão comum, tanto porque vocês na prática não devem conhecer tantas pessoas trans, mas é muito comum as pessoas olharem a questão do pronome e do banheiro (que seria resolvido se a gente olhasse que banheiro serve para cagar e ponto final) - o que é só a ponta do iceberg, quantas vezes eu não tive que lidar com burocracias desnecessárias, com as pessoas me excluindo de alguns espaços (é algo bem discreto, não lembrar que você existe, por exemplo), evitando falar comigo e coisas do tipo. Lá na ponta, isso é não contratar pessoas trans mesmo elas tendo qualificação, isso são as mortes que passam despercebidas porque as delegacias não registram o nome das pessoas trans corretamente.


Já pensou ? Você morre e ninguém reconhece o seu nome ? Isso parece algo muito bom, não é mesmo ? Nem falo sobre relacionamentos, como é difícil para uma pessoa trans namorar e às vezes ficar naquela incerteza se a família do seu namorado(a/e) vai ter aceitar - já basta as dificuldades que a gente tem com a nossa própria família.


O filme explora muito essa questão : todo mundo é “super feminista”, mas continua reproduzindo os valores machistas da sociedade patriarcal. Leitor, você vai precisar me perdoar, eu preciso dizer que para alguém que é o lado que termina como um cadáver sem nome na história, é muito desgastante você ter tanto discurso em defesa das minorias e tão pouca defesa dos direitos das minorias.


Esse filme não é só sobre isso, inclusive ele consegue servir para discutir tantas coisas que, acho que é o que faz uma história ser tão boa. A possibilidade de poder retornar para ela, aproveitar e pensar coisas. Eu vi depois de escrever um texto para a universidade “porquê devemos ter África no nosso currículo”. Lá eu escrevi a continuidade da história, a importância de se compreender os processos históricos.


África e Brasil tem uma relação para dizer no mínimo complicada. A gente perdoa o Brasil pela escravidão, nós olhamos as nossas instituições (que se você perguntar vão dizer que defendem o povo negro) e a gente sabe muito bem o que elas fizeram no verão passado. A gente sabe que a polícia não quer proteger ninguém, que ela existe para fazer limpeza racial e claro, proteger a sagrada propriedade privada. Falem à vontade o quanto na letra fria da lei ela não é racista e elitista, a gente sabe muito bem a função da lei na ditadura da burguesia.


O filme me fez ficar pensando exatamente nisso. Qualquer pessoa consegue falar que é pró-minorias e justiça social - lutar por isso é outra história. Aqui vou precisar trazer um ponto que grupos fascistas geralmente apontam ao criticar o discurso de justiça social, ou o woke, ou esquerdista : há uma certa hipocrisia das pessoas defenderem uma coisa e não defenderem outra. Eu sei, me perdoe, fascistas são péssimos teóricos, mas isso é uma pista que a gente pode seguir.


E se não for hipocrisia, e se for só cinismo liberal ? Hipocrisia é normal. Se você ainda não é adulto, acho que vai ser difícil de você entender isso : as pessoas são contraditórias, elas têm problemas, são complexas (é o que mais amo nas pessoas). Por isso não é hipocrisia, nesse caso, considerando tudo, é cinismo. O discurso de que as minorias merecem direitos já é algo comum, essas pessoas sabem que isso existe e que é uma questão.


Por isso os fascistas chamam os liberais de hipócritas, porque no final do dia eles não são tão diferentes. O fascista não esconde o que pensa, porque ele quer guerra, ele existe com o propósito de matar esses impuros. O liberal prefere dizer que é a favor, que gosta das minorias, etc - desde que mantenha o limite de não tomar o poder dele e não resistir contra a opressão.


Basta você notar o seguinte : todo mundo ama o pacifismo, manifestações pacíficas e tranquilas. “É só conversar eles dizem” segurando um livro do Habermas no colo. E assim, esse influxo constante de mídias consideradas progressistas, filmes com mensagens revolucionárias, e tal, é em parte para satisfazer esse tesão liberal por debate.


Para eles as ideias mudam o mundo. São elas que são capazes de criar versões melhores de nós mesmos. A inclusão desses discursos na mídia não importam em nada, servem para satisfazer necessidades de mercado. O Che na camisa é excelente, o medo deles é quando as pessoas começam a seguir o exemplo do Che.


O que realmente incomoda é quando esses grupos, de fato, se organizam e reagem contra a opressão. É aí que o liberal chama o fascista. É muito confortável deixar as coisas como estão, discutir as coisas no ar e achar exótico o pensamento oriental. Quando o pensamento oriental se chama maoísmo, aí que a coisa pega. O liberal rapidinho parte para o orientalismo.


Novamente, sem spoiler. O filme explora essa dinâmica. É extremamente didático ver como isso acontece. Você tão boa filha, tão gostosa, tão casada, se você seguir exatamente o script que a sociedade liberal patriarcal te oferece. Se você pular um pouquinho fora, ah, você já vira o fracasso.


O liberalismo quer evitar conflito, especialmente no país dele, pelo menos o liberal inteligente pensa assim. A última coisa que você quer, como um liberal, é que as pessoas comecem a se organizar e a de fato, ter poder político para lutar contra ele. No nível micro, é perder “um espaço de direito”. Para o menino da Barra, quando alguém pobre entra na universidade dele, ele tá tirando o espaço destinado a ele, homem branco. O feminismo liberal odeia as mulheres trans porque isso é tirar o espaço delas como mulheres brancas.


Esse é um ponto importante, tudo na sociedade é escasso, é transformado em escasso por conta do preço que as coisas ganham e a questão sempre é quem deve ocupar esse espaço. Por muita coincidência, o liberal e o fascista concordam que não deve ser uma minoria. Muita gente cai na armadilha de acreditar que basta conquistar esse espaço e a desigualdade some.


A questão não é essa, quem pôe ela esses termos são os liberais. O que a gente deveria mesmo defender é que todo mundo tenha espaço e que todo mundo possa viver em paz. Eu não quero ser doutora trans, sei lá, pouco importa o que eu vou ser, deixar de ser, em relação ao projeto político (como se algum professor quisesse pegar algum projeto meu, só em sonho mesmo…). O mais importante no final do dia é que todo mundo tenha a oportunidade de contribuir para academia, que a universidade não sirva só de think tank e de fábrica patente. O meu destino não é importante, “chegar lá” não importa se todo mundo não pode vir comigo.


Essa solidão, esse isolamento constante, principalmente em relação a essas coisas que  é sufocante. A arte serve para ajudar a gente compreender essas coisas e em grande parte, acho que o filme fez isso para mim hoje…

Ghost