ᴱᵐ ᵈᵉᶠᵉˢᵃ ᵈᵃ ⁿᵒˢᵗᵃˡᵍⁱᵃ

Acabei de assistir Last Night in Soho. Não vai ser necessariamente uma resenha (assim como quando eu escrevo de outros filmes). Eu sou uma dessas pessoas radicalmente pessimistas com o futuro - não é que acredito que as coisas vão piorar, eu não acredito que vá ter um futuro. E assim, concordemos que futuro não existe, independente de eu acreditar nele, é uma projeção, uma mistura de passado com presente.

Pensar no futuro é algo que tem funções diferentes. Pode ser uma ferramenta para te prender, como pode servir para te libertar. Quando se discute nostalgia, de Fredric Jameson, Mark Fisher, Derrida, etc, você tem quase que uma unanimidade contra ela. E de certa forma, é fácil ver porquê.

Nostalgia te coloca num estado de sonho. Não é o passado que você enxerga, mas a sua projeção. Você não tem uma ideia de como realmente foi, como a experiência se deu, como era sentir e viver em determinada época. Mesmo você no auge dos seus 20 anos, você sabe que 10 anos atrás, 2010s e anos 2000s, não eram lá tudo aquilo.

Muita gente gosta de lembrar dos desenhos icônicos da TV na época, o quanto era bom acordar cedo, tomar café, ver desenho e ir para a escola. Lembro que eu acordava às 9, tomava café vendo desenho, tomava banho e ia para a escola. Só de falar sobre isso, acredito que muitos de vocês devem estar lembrando das suas infâncias. Aí vem a parte que a nostalgia começa a incomodar - eu lembro de pensar sobre me matar a infância inteira, sentia um peso no peito constante, vivia sozinha, ninguém queria brincar comigo e ninguém fazia bullying comigo por medo de morrer, já que eu sempre passei(o) essa vibe de assassina em massa. Até hoje tem gente que me acha doida.

E não sou só eu que se olhar mais fixamente pro passado vai ver que não era tudo aquilo, ou até que não era tão ruim assim. Que tinham problemas, que as coisas não eram fáceis, que nem tudo eram flores - ou até que boa parte era dor e sofrimento e que mesmo no meio dessa escuridão se encontrava alguma luz.

(Mesmo só por texto, eu acho que eu já passo muito essa vibe, só que eu sou legal, eu acho. Um dia vocês vão me ver e vão confirmar isso.)

Só que o maior problema com quem é contra a nostalgia ou com quem delimita radicalmente os movimentos culturais em determinadas épocas, é que a história continua. Ninguém acordou no dia primeiro de janeiro de 1960 vestido de hippie, em grande parte a cultura ainda era cinquentista e vou mais longe, ninguém dos anos 50 abandonou aquela cultura urbana da década de 30 - e assim segue. Nós deixamos de imitar os antigos sumérios ?

De certa forma, a crítica da nostalgia geralmente se dá pelo fato de ser sempre uma imitação do passado, não é uma historiografia que tenta no máximo compreender e interpretar o que aconteceu dentro do contexto da época. Um elemento importante da nostalgia é a arbitrariedade - “as boas memórias”.

Um estado feliz com o passado, uma certa melancolia de não poder aproveitar aqueles momentos como eles foram. A grande questão é que a gente quando vive o momento, não aproveitamos o tal momento. Nós não sabemos envelhecer, não sabemos tratar a velhice como parte da vida. Há uma certa ideologia da novidade e da juventude que impedem a gente reavaliar melhor o papel do passado em nosso presente.

As pessoas quando ficam velhas acham que já estão mortas e que não fazem mais nada pelo mundo. Quando na verdade, os velhos são a base da sociedade, são eles que reproduzem os principais valores do que a gente chama de civilização, do que a gente chama de certo e de errado.

Quando a gente cresce, nós olhamos os mais velhos como pessoas que devem saber alguma coisa sobre a vida. O cara pode ser um imbecil, mas ele já estava no mundo quando a gente se deu por conta que é gente. Você jovem, pode ter a cabeça cheia de vento e literalmente ter caído aqui de paraquedas, até você sabe que quando precisa fazer alguma coisa, ou aprender algo novo, você vai em quem é mais velho pelo simples fato deles estarem literalmente mil anos aqui e é impossível não terem aprendido alguma coisa.

Se tem uma coisa que discordo radicalmente é que os idosos sejam todos conservadores. São os mais velhos que muitas vezes têm tendências mais radicais, justamente por já não ter aquele compromisso dos jovens em tentar ter um espaço na sociedade. Se você é velho e conservador, eu te garanto que é na verdade porque você não superou o fato de ter envelhecido, de agora ter responsabilidades, de ter ainda não ter superado o seu passado.

Interessante porque o velho conservador é o que mais “cometeu erros” no passado. Uma tendência muito comum são pais conservadores terem aprontado muito na juventude e essa repressão passada para os filhos, muitas vezes é o que incentiva os jovens a serem mais “rebeldes”.

Quantas vezes eu já não vi jovens que tem uns pais repressivos virando rebeldes e jovens que têm pais mais tranquilos serem mais conservadores ? (Em defesa do método científico, isso é uma hipótese, que pode ou não se confirmar, que pode estar dizendo muito sobre o meio social que eu vivi, desculpa não consigo fugir de mim mesma)

Qual é o mecanismo psicológico que leva esses jovens rebeldes a virarem conservadores ? Culpa. De ter violado alguma regra, de ter feito algo “errado” e não conseguir se perdoar pelo o que fez. Ou até pior, de nunca ter sido punido. É o de que seus filhos não repitam os mesmos erros que eles. Mas não existe uma avaliação frontal do porquê o que fizeram foi um “erro”, ou que levou as coisas a darem “errado”.

Aqui os psicólogos de plantão fazem festa. Ainda que eu quisesse ir para esse lado, a questão não é meramente psicológica. Não acho que isso vá nos levar para lugar nenhum em nosso debate. Até porque eu proponho o seguinte : ser velho e ser jovem, na prática, não muda o fato de você ser aquela mesma pessoa jogada num mundo que não entende e que precisa sempre aprender uma coisa ou outra. A única diferença é que o velho pode aprender algo, pode construir um conhecimento por mais tempo. O cão velho sabe alguns truques, mas também não significa que não possa aprender novos, nem que o cão novo não possa ensinar.

Esse filme é muito isso. Uma coisa é você cair na nostalgia, olhar o passado como um lugar glamouroso, como o melhor momento de todos os tempos. Esse é um momento que a gente vive em um primeiro instante, é incrível viver em festas, ter amigos, usar drogas e fazer muito sexo - esse aspecto da juventude é posto de uma forma, como parte essencial de aproveitar a vida e ter aproveitado a vida. Deveria ter sido muito bom viver nos anos 60 !

Aquele momento da juventude que você é cheio de sonhos, quer ser famoso, vai entrar na universidade e vai conseguir fazer muitas coisas importantes. Esse é um estado de sonho, que tanto os jovens muitas vezes experimentam, mas principalmente são os mais velhos que os reproduzem.

São eles que querem que a gente siga certos caminhos. Os mais velhos são os que dizem que a gente deve aproveitar a juventude, que devemos ter responsabilidade e a gente sabe bem, os velhos ideais de vida tranquila, muito dinheiro, uma família, etc. O que é fazer o “certo” na vida é em grande parte reproduzido pelas gerações mais velhas sobre os jovens.

O segundo momento é quando o sonho vira pesadelo. Sabe aquele cigarro que você começou a fumar cedo ? Agora você tosse sangue e não tem muito fôlego. Todas aquelas vezes que você fez sexo, teve uma que você teve/fez uma criança e vai ter que lidar com isso. Aqui o pior aparece, desmantela aquele estado de sonho em relação ao passado.

Não é difícil olhar isso, por um lado, o jovem se tornando um pessimista sobre o passado, também a repetir o mesmo pessimismo sobre o presente - aqui surgem os recriadores da roda. Só que a figura mais importante aqui não é o jovem - é o velho. É ele que alerta que o sonho de ir morar na cidade grande pode ser uma grande roubada, porque ele é a pessoa que foi para a cidade grande e teve seus sonhos roubados.

É aqui que todo mundo para e deixa a nostalgia para lá. Essa nossa incapacidade de encarar a história “do jeito que ela é” é o que mais nos impede de compreender o nosso presente e de reavaliar as nossas posições. Faltam fazer mais perguntas, não vamos a fundo para entender o nosso passado, nós ou ficamos num eterno brilho de uma mente sem lembranças ou nos tornamos velhos rabugentos reclamando que idealiza o passado negativamente ou positivamente, reclama de no presente todo mundo estar fazendo merda.

Aí que vem a conversa de que o futuro está perdido.

O problema, na minha opinião baseada em algumas leituras e reflexões, não é a nostalgia em si, assim como eu não acho que o problema de muitos movimentos é o culto à personalidade, ou à algum momento da história, o problema é a gente não ter a capacidade de capturar esse sentimento positivo do passado, a crítica pesada historiográfica e transformar isso numa potência para transformar o presente, e inventar um futuro.

Eu acho que 1917 teve uma série de problemas, mas eu não quero perder o sentimento revolucionário de 1917. É um movimento dialético, por um lado eu quero olhar o passado com o mesmo entusiasmo que quem olha para ele com nostalgia. Como quem quer que o passado possa voltar - mas que volte o que o passado teve de bom. Eu quero a excitação da eleição de Prestes e Jorge Amado, quero acreditar que aquela época poderíamos ter feito muitas mudanças mais radicais.

Só que eu quero compreender de forma contextualizada, crítica, de forma a desmistificar o passado para conseguir capturar alguma lição para aplicarmos ao presente. Não adianta abandonar tudo e querer reinventar a roda, é preciso também aprender para inventar o futuro. É preciso ter coragem para enfrentar de frente o passado para superá-lo.

O passado é uma espécie de trauma. Volto ao início do texto, por que acordar às 9, ver desenho, tomar banho, almoçar e ir para aula eram coisas tão boas ? Será que é por que hoje como trabalhadores nós não temos nem a metade desse tempo ? Será que a nostalgia da infância não é por que a nossa vida adulta materialmente piorou drasticamente ? Veja como você começa a fazer perguntas mais relevantes. Confrontar o passado, é ter a possibilidade de inventar o futuro…

Viva a nostalgia.
Ghost