ᶜʸᵇᵉʳᵖᵘⁿᵏ ²⁰⁷⁷ ᴱᵈᵍᵉʳᵘⁿⁿᵉʳˢ ᵉ ˢᵘᵃˢ ᵃʳᵐᵃᵈⁱˡʰᵃˢ...

(Lucy é para mim é uma referência clara à Lain do Serial Experiments Lain, inclusive a sua história.)

Não tem nada no gênero cyberpunk que não seja radical. 

A premissa de um mundo cyberpunk são suas modificações corporais radicais, o mundo neon ultra-avançado, dominado por grandes corporações e a perspectiva da história geralmente é do mercenário, do punk, do rebelde que luta contra esse sistema.

Eu queria ser mais competente e ter lido mais literatura cyberpunk do que jogado ou visto filmes. É muito claro, olhando para a premissa desse gênero, que apesar da ideia ultra-esquerdista radical, falta alguma perspectiva mais analítica sobre aquela realidade, algumas coisas são postas em debate, enquanto outras são naturalizadas, dadas como coisas impossíveis de mudar.

Fui ver a série porque comecei a jogar o jogo Cyberpunk 2077 (não me perguntem onde eu baixei) e resolvi esperar lançarem a DLC para continuar, já que ela me dá mais uma opção de final e eu quero, como boa jogadora de RPG, ter o máximo de opções possíveis. Então, eu resolvi assistir a série (também não me perguntem como).

Durante a minha jogatina, uma pergunta pairava sobre a minha cabeça : como isso aconteceu ? Como uma empresa de jogos grandes me lança um jogo com mensagens esquerdistas tão explicitamente e isso simplesmente não é algo discutido. É interessante que o que se fala de Cyberpunk 2077 da CD Projekt se resume a pequenas polêmicas em relação à bugs e ao fato de você conseguir criar personagens trans, do que o jogo criticar, não só textualmente, mas na construção de seu universo, o mundo capitalista que conhecemos muito bem.

As relações de trabalho arrombadas, os sistemas públicos privatizados, a extrema desigualdade social, a prostituição, o crime como parte da extensão dos interesses da burguesia (basicamente algumas coisas só são crimes porque você pobre comete). De longe, o que mais me incomoda, da mesma forma que me incomoda no nosso mundo, é o fato de que as pessoas ainda enxergam a integração nesse sistema como um horizonte para um amanhã melhor.

As pessoas querem um bom cargo numa boa empresa e estão dispostas a trair, mentir, sabotar, mesmo contra os próprios colegas de trabalho para conseguir se igualar aos grandes CEOs, que por conta da tecnologia são praticamente imortais. As pessoas estudam já com essa perspectiva, as meninas que viram "bonecas" para satisfazer clientes com muito dinheiro tem isso em mente, assim como os mercenários que pegam contratos de "fixers" (que são tipo uns maluco que dão os contratos) com uma ideia de se tornar uma lenda.

A única forma de sair da pobreza é tentar virar uma lenda, ganhar uma boa reputação e ganhar contratos cada vez mais caros. Mas a grande questão, em quaisquer caminhos de quem tente ganhar a vida neste mundo é que ninguém consegue, porque o sistema em si já é injusto, porque é basicamente um jogo de cartas marcadas onde nós aqui embaixo sempre ficamos à sombra do que as grandes corporações desejam para o mundo.

Por mais que a ideia de sonho americano, glamour, permeia todo espaço do universo do jogo/anime, essa ideia é logo mostrada como uma miragem para um mundo cheio de sujeira, crime, espionagem, e por muito fracasso e situações de perda de confiança. Sim, as pessoas são extremamente individualistas e vão te trair o tempo todo por alguns trocados.

O tempo todo, o que acontece, seja no anime, seja no jogo, são demonstrações que não vale a pena tentar. Em comparação com o nosso mundo hoje, por mais que a gente viva em uma situação muito parecida, a situação do mundo no universo do Cyberpunk 2077 é muito pior. Nós ainda podemos, com muita sorte, fazer um concurso público, arranjar um emprego CLT e talvez fazer um trabalho autônomo não tão arrombado. O mundo do Cyberpunk 2077, por exemplo, privatizou sua polícia, seu sistema de saúde, o Estado (assim como na vida real) é só uma bancada de negócios da burguesia. 

Em nosso mundo nós ainda temos coisas que paliativamente fazem com que a nossa situação seja amena comparada com o mundo da ficção do jogo/anime. Só a título de exemplo, em nosso mundo você ainda tem alguns sistemas públicos de assistência social, enquanto no Cyberpunk isso não existe basicamente.

É interessante porque há um discurso dentro do jogo que parece radical : ódio às corporações. Mas é como se as pessoas individualizassem o seu ódio só nessas corporações, não é como se houvesse uma compreensão mais ampla de como funciona o capitalismo. É como hoje, tem gente que odeia a Amazon, mas não compreende que a Amazon só existe porque vivemos no capitalismo.

Eu acho que aí é possível compreender como uma grande empresa parte para um projeto dessa natureza. Há uma naturalização do capitalismo como sistema, uma individualização em relação ao problema.

Vamos supor que você queira fazer algo nesse mundo, que você tenha um sonho para o seu futuro, a única forma de fazer isso passa por você ganhando muito dinheiro. Em termos de RPG, o jogo te dá opções de simplesmente expressar mais empatia, companheirismo, criar laços de amizade e não só de ser um mercenário maluco atrás de dinheiro. Mas é importante aqui a gente tentar pensar o seguinte : se você pode fazer isso, apesar desse mundo, isso significa que outras pessoas também são capazes de fazer isso, e se outras pessoas têm essa capacidade, por que não existe uma organização das pessoas como classe contra essa burguesia ?

Por que tudo precisa se resumir a ganhar dinheiro e por que a gente não tem capacidade de construir comunidades para lutar contra o capitalismo ? Até para uma perspectiva anarquista, por que isso não é uma coisa naquele mundo ?

Há uma glamourização excessiva de você tentar ser uma lenda, ou de você tentar ser um corporativo ou uma prostituta, (ainda que exista muita crítica contra isso) e não é posto como horizonte nada de novo. É um defeito nesses pós-marxistas (Mark Fisher, Baudrillard, Debord, cia) que é apontar que o capitalismo é fadado a nos destruir, que sua única função é a reprodução do lucro e pouco importa se a gente morre no processo. Nós chamamos essa literatura de marxista, mas no final do dia o que mais falta na análise deles, apesar de todo floreio teórico, é o elemento prático para destruir esse sistema - que gostem ou não, Marx, Engels, Lênin, Mao e Stalin são capazes de fazer.

Fisher, por exemplo, fala da nossa incapacidade de inventar um novo futuro e de ficar repetindo o passado em nossa cultura. De um lado, eu acho que há uma fetichização excessiva do novo, do outro, eu acho que há perda de memória em relação ao anticomunismo criado no ocidente e não só, como autores marxistas ocidentais e professores universitários diversos, tiveram como papel não só de denunciar alunos e colegas comunistas, mas de criar toda uma teoria social anticomunista.

Por que as pessoas não se organizam ? A verdade é que, tanto no caso da ficção como da realidade, as pessoas se ajudam, elas criam correntes de solidariedade, criam sindicatos apesar da propaganda anti-sindicato, elas organizam autodefesa, organizam cozinhas solidárias, etc - O que limita a capacidade dessas organizações crescerem e se tornarem revolucionárias ? Essa é fácil de responder, elas são criminalizadas dia sim e dia também, elas são atacadas, muitos são assassinados e existe uma propaganda contra esse tipo de iniciativa o tempo todo. Internamente, por conta de uma ideia dispersa e liberal de democracia, muitas organizações não buscam se organizar de forma mais ampla, de profissionalizar o seu trabalho e pensar a sua militância de forma mais tática. Até em organizações que se dizem leninistas, há um abandono da perspectiva da organização em favor de uma ideia de democracia liberal.

E tem sempre ideia de que a "natureza humana" X.

Há essa ilusão de que a única maneira de "ser alguém" é fazendo dinheiro, porque as outras alternativas de criar um "nós" são esmagadas diariamente. É interessante um outro ponto, que Cyberpunk parece insistir bastante, as pessoas mentem, não são confiáveis. Sem confiança se torna impossível construir uma comunidade.

Mas gente, isso é uma perspectiva extremamente idealista de como funciona a sociedade e as pessoas. Sabe uma organização que funciona na mentira, na traição, na falta de confiança e todo mundo passa o tempo todo defendendo ? A família. O problema da família, como uma instituição, não é porque existe mentira e as pessoas são pessoas, o problema da família existe na maneira que ela é organizada.

De um lado, parece a coisa mais adulta apontar que as pessoas podem não ser confiáveis, mas na verdade é chover no molhado para quem compreende que sim, o mundo é absurdamente complexo e cheio de intrigas. Vou até mais longe, não é que todo mundo mente, é difícil para você descobrir quando você mente para si mesmo.

O jogo, para mim, é muito melhor que o anime em questão de história e tudo mais. Eu acho que o jogo me fez perceber o quão é valioso você, por mais limitado que seja, ajudar as pessoas, criar laços de amizade, num mundo individualista selvagem. Como faz falta uma comunidade, o contato, participar da vida de alguém, construir uma coisa coletiva.

Enquanto a gente não consegue se organizar de forma mais ampla, às vezes uma relação de amizade é o que basta para plantar aquela semente para uma revolução.

🍭 🎀 𝐼'𝓁𝓁 𝓉𝑒𝓁𝓁 𝓎❀𝓊 𝒷𝓊𝓉 𝒾𝓉'𝓈 𝒿𝓊𝓈𝓉 𝒷𝑒𝓉𝓌𝑒𝑒𝓃 𝓎🌺𝓊 𝒶𝓃𝒹 𝓂𝑒. 𝐼'𝓁𝓁 𝓉𝑒𝓁𝓁 𝓎💙𝓊 𝓌𝒽𝒶𝓉'𝓈 𝒽𝒶𝓅𝓅𝑒𝓃𝒾𝓃𝑔 𝒾𝓃 𝓉𝒽𝒾𝓈 𝓈🌸𝒸𝒾𝑒𝓉𝓎, 𝓌𝒽𝒶𝓉'𝓈 𝒷𝑒𝑔𝒾𝓃𝓃𝒾𝓃𝑔 𝓉🌸 𝓉𝒶𝓀𝑒 𝓅𝓁𝒶𝒸𝑒 𝒾𝓃 🍩𝓊𝓇 𝓈🍬𝒸𝒾𝑒𝓉𝓎 𝒿𝓊𝓈𝓉 𝒷𝑒𝒸𝒶𝓊𝓈𝑒 𝓎💍𝓊 𝒹🏵𝓃'𝓉 𝓀𝓃😍𝓌 𝒶𝒷💮𝓊𝓉 𝒾𝓉. 🎀 🍭


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